Conheci Eduardo quando ele recém tinha se tornado um número. Menino bonito, nunca vou esquecer. Cabelo negrinho, brilhava na luz de quarta-feira, quase meio dia. Os cachos caíam ao lado do rosto. No fim de dia chuvoso, deitava no colo da mãe. Assistiam juntos Chaves enquanto ela cacheava com os dedos cada mecha gorda daquele cabelo. Qualquer mãe com um filho cacheado como aquele faria isso. Irresistível clichê. Pele cor de amêndoa.

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Quando nasceu, a vó viu nele alguém da família. Talvez o pai, a própria mãe ou quem sabe ela mesma. Pele boa. Quando o vi, ainda tinha o viço de pele de menino de cinco anos que não pressupõe as rugas futuras e tudo o que tempo marca nessa sucessão de minutos que é a vida. Guri pequeno sonha com futebol no campinho, videogame no vizinho, andar de bicicleta sem ter hora para voltar. Eu sonhava. Ele não mais. Canelinha fina, pé caído para o lado.

Será que chutava com a esquerda ou com a direita? Em dia bom, saía festejando os gols com os amigos. Comemorava gol ninando bebê ou imitando avião? Ah, verdade. São coisas do século passado. Ele era pequeno demais para saber disso. Mais tarde, quando soubesse o que é YouTube – talvez já sabia, que ingenuidade a minha -, veria os gols de Bebeto e Ronaldo em algum vídeo. Continuaria jogando futebol com os amigos quando ficasse mais velho? Faria sucesso.

Tinha lábios carnudos, daqueles de fazer adolescente nunca esquecer o rosto da parceria de primeiro beijo. Morenos – ainda que já começassem a azular quando o conheci -, os lábios de cima eram levemente menores que os debaixo. A boca entreaberta dava pistas de dentes cor de nuvem, grandes, ainda que provavelmente fossem de leite. Pela idade, não deve ter passado pelo medo de ter um dente mole e não ter coragem de arrancar. Nunca chegou a pedir ajuda ao pai. Ele amarraria um fio e puxaria ou encorajaria que próprio Eduardo o arrancasse? Carregava quilicas enormes.

Nunca vou saber a cor verdadeira dos olhos de Eduardo. Só sei que estavam vazios. Olhavam para o nada, como quem não acreditava no que aconteceu. Talvez eu mesma é que tinha olhos de quilica naquela hora. O pequeno tinha olhos de gato assustado à noite. Mas era dia e as pupilas borravam tudo de carvão. Era pequeno, como um menino de cinco anos.

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Quando o conheci, estranhos apertavam num ir e vir sem fim naquele peito de passarinho. A camisa estava branquinha, de menino que ouviu a mãe – Eduardo, cuida para não sujar o uniforme de novo. Bermuda azul, tênis pretinhos, pés desconexos. Deitado onde ninguém deita, exceto quando não há opção. Ao redor, muita gente. O amigo não entendia. Puxava para frente as alças da mochila que roçava as costinhas. Estava tudo tão bem, até que Eduardo foi parar ali. Conversavam felizes na saída da aula. Atravessavam a rua com o trânsito parado. Sempre espera a professora para atravessar a BR, Eduardo – também consegue ouvir a mãe? Venceram a primeira faixa, mas na segunda Eduardo sumiu. Eu vi. O amigo não viu quando o carro lento e desavisado pisou no peito do passarinho.

Naquele instante ele deixou de ser Eduardo. Virou algo entre 90 e 100/2014. Na contagem de vítimas desde 2000 na BR-470, tornou-se algum número por volta de 1.570. Eduardo ainda poderia ser Eduardo se tivesse uma passarela na frente da escola. Se dessem destino certo ao dinheiro que pagamos, destinos suspensos seriam poupados. Se fosse assim, eu não teria conhecido um número e Eduardo ainda seria uma criança.