Não lembrava quanto tempo fazia a última vez em que havia recebido sorriso tão largo. Não daqueles de vendedoras de lingerie em véspera de Dia dos Namorados, mas daqueles em que os molares dão oi e os olhos quase somem. Sincero na essência.
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Gosto de colecionar avós por aí. Quando investia oito horas do meu dia a reportagens no Santa, a cada nova entrevista com alguma senhora com mais 65 era certo que contabilizaria mais uma avó. Sempre voltava à redação com algum presentinho típico delas. Aquela senhora de sorriso indiscreto, caso fosse uma entrevistada, seria forte candidata a ser mais uma da minha coleção de relíquias. Não era o caso.
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Com orgulho de um altruísmo tosco – porque altruísmo é algo muito maior que aquele pequeno gesto, entendi depois – tratei de entregar o tufo de cabelos que me fizera descambar até ali. Não me considero vaidosa, talvez seja. Mas possivelmente estou dentro de um limite que não me deixa fazer muita besteira em nome da beleza, e isso inclui meu cabelo. Preguiça de ir com frequência ao salão, xampu e condicionador relativamente baratos eram a garantia de elogios. Cortá-lo nunca foi problema – eis o motivo da falsidade ideológica do meu altruísmo de quinta. Só não imaginava como um tufo de cabelos castanhos de quase 30 centímetros poderia significar bem mais que um corte novo e pescoço de fora.
A senhorinha de jaleco rosa-bebê impecável recebeu o cabelo como preciosidade. Agradeceu. Mas não daqueles obrigadas triviais. Agradecer é tão automático que às vezes agradeço a alguém por um favor que eu fiz. Ela ficou genuinamente grata, mas naquele momento não entendi direito o motivo. Elogiou meu novo corte. Até que chamou outra senhora. “Olha que lindo o cabelo dela”. “E não é peruca”, completou.
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A segunda ficou espantadíssima. “Está lindo mesmo”, concordou. Aquilo foi um golpe em quem achava que estava fazendo muito ao levar um tufo de cabelo destinado a virar peruca. Não que meu cabelo não parecesse de fato com uma. Ajeitado no salão, fica artificialmente bonito. Ela me fez perceber o óbvio: estavam tão acostumadas a ver mulheres de peruca que meu cabelo natural foi motivo de exclamação. Engoli o choro prestes a nascer ali, no balcão da Rede Feminina de Combate ao Câncer.
A única certeza em relação ao meu ex-cabelo era de que, em algum momento, ele pararia sobre uma cabeça lisa que estava na peleja pela vida. Foi duro não conseguir dimensionar o sofrimento de quem passou por sessões de quimioterapia e tratamento tão agressivo para dar cabo de um câncer de mama. O cabelo seria um pequeno alívio à autoestima de mulheres que tiveram de abrir mão da estética para sobreviver. Outubro, nos lembram, é rosa. Para a Rede Feminina de Combate ao Câncer, o ano inteiro é rosa. E de altruísmo de verdade.