Caminhar na rua é expor-se a pequenos desafios olímpicos, especialmente aos sedentários, categoria da qual me esforço para sair, sem muito sucesso. Depois de dias de terra encharcada e guarda-chuvas gotejando inconveniências por aí, o sol é motivo alegria. Troféu a quem testa as habilidades em saltos sobre poças de água barrenta, caminhos sinuosos para sujar menos os sapatos, corridinhas intermitentes ao atravessar a rua quando não há absoluta certeza de que conquistamos a atenção do motorista mais próximo. Caminhantes ainda têm de desviar um dos outros. Tudo isso sem se entreolhar, sem sorrir, sem bons-dias, boas-tardes, como determina o guia do blumenauense fundamental. Sigo o ritual mais por timidez do que apego às tradições locais. Criamos invisibilidades enquanto flanamos.

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Indiscreto, apesar de invisível, fazia a averiguação que lhe é habitual. Apurava no amontado de lixo na calçada se havia ali mais alguns gramas para engrossar o faturamento no fim do dia. O carrinho já acumulava quantidade significativa de papelão. Avançava para o alto, desafiando qualquer lei de equilíbrio, trânsito ou bom senso quando se tem de carregar aquilo tudo pelas calçadas irregulares que não são exclusividade das ruas do Victor Konder. Tenho de admitir que, ao seguir a cartilha do blumenauense fundamental, não notei se estava de bermudas ou calças, camisa branca ou preta. Mas lembro que vestia um largo sorriso. Feliz. Até eu estaria. Quem depende do clima para trabalhar enfrenta maus bocados nestas cercanias. Ou é muito quente, muito úmido, muito chuvoso. Será mesmo que Dr. Blumenau não tinha outro lugar para pôr em prática seu projeto?

Como mais um obstáculo inanimado da rua, era desviado pelos caminhantes apressados. O carrinho enorme no meio da calçada e o catador de papelão ou duas pedras são sinônimos na paisagem urbana de uma cidade que sequer ergue as sobrancelhas quando um deles (eles e nós, ensina a cartilha) desaparece em chamas. A teoria foi colocada em prática outro dia, na XV. Até tentei notar melhor ambos, talvez arriscar um bom-dia. A rinite não deixou.

Caminhar alguns metros de olhos fechados é um obstáculo adicional aos que sofrem desta peste negra da modernidade. Não são poucos os espirros num dia de visita da rinite. Não posso reclamar, poderia ficar com os olhos vermelhos, nariz trancado, dor de cabeça e um novelo de chatices que vejo amigos enfrentando. Fico apenas nos espirros. Tenho certeza de que existem relatos de rinite desde o tempo da colonização. É o brinde do clima local. Certo que desde 1850 sempre teve alguém espirrando e avisando a quem está por perto, com cara assustada: é só alergia. Justo um destes foi a deixa para que o invisível pudesse, por vontade própria, tornar-se visível.

Já tinha passado alguns metros do carrinho quando levantou a cabeça do monte de sacos que averiguava para me desejar alguma saúde. Num grito alto o suficiente para ser ouvido por baixo dos meus fones que tocavam alguma música que combinava com o sol que desassossega a alergia. Agradeci, com outro grito, obrigada. E ele voltou à sua condição e eu à minha, seguindo a cartilha que, já passou do tempo, precisa ser reciclada.

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