Trânsito parado. A sinaleira apressada faz a fila fluir a conta-gotas. Meus olhos se perdem do outro lado da rua. Camisa engomada, cor de nuvem. Peito estufado, barba aparada, óculos escuros sobre a cabeça. Pimpão, caminha em plena Rua 7 de Setembro, à margem dos carros, naquela manhã ensolarada de uma terça-feira qualquer.
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Sapatos pretos bem lustrados, calça justa. O veludo marrom combina com a pele. A cada mulher que passa, um bom dia garboso. Não ouço, mas imagino que use uma voz forçadamente grave. Entonação de locutor de rádio. A subsequente virada de pescoço. Ao trio de garotas que se aproxima, saca o melhor olhar 43 do repertório.
Orgulhoso, o conquistador carrega atrás de si o saldo do trabalho do dia anterior. Um escritório móvel. Entre uma cantada e assovio ou outro, está atento às lixeiras à beira da rua. Para no primeiro monte vistoso que vê. Com cuidado para não manchar de ferrugem a camisa, passa por baixo do metal que liga as hastes paralelas fixadas na carrocinha. Chega mais perto e constata uma boa quantidade de papelão. É o expediente que começa. E chegou a minha vez de gotejar no trânsito.
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Desastradas
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As portas que se fecham. As quinas que me atacam. As canetas que fogem. O café rebelde que salta da xícara. As coisas que se revoltam e eu quito a conta. Desastrada, dizem. Mas coisas é que são.
Fuga
Às vezes as palavras fogem. Por que correm para tão longe? Talvez não queiram se afogar nesse mar que me atiro. Aqui e lá sempre tem alguma coisa nos puxando pelo dedo. Mais uma informação, mais um começo sem fim. Só um clique a mais. Leia, não pense, siga. E assim estamos afogados em tudo e nada ao mesmo tempo. Testemunhas de verborragias alheias. Indiscretas e indiferentes. Calemos os dedos e os olhos. Quem sabe, quando a maré baixar, as palavras, aquelas que falam verdades, voltem à superfície.
Caça
A caça de assunto é um esporte perigoso. Flanando por aí não falta o que pôr na mira. As curvas da XV devem esconder histórias inarráveis. A saga das capivaras que arriscam o pelo duro atravessando o Itajaí-Açu. As caretas diante do açúcar com nata e limão cobrindo folhas de alface. O cheiro de cuca saída do forno da Oma. A social democracia alimentada à base de sorvete do Schmidt. A malquista rodoviária oferecida como condenação aos contestadores da província. A beleza mórbida que há num cemitério vizinho de um hospital. Hoje é 29 de fevereiro, raridade. O problema é que neste esporte o cronista, desajeitado que é, pode dar um tiro no pé.