Gosto de caminhar na rua. Não que a atividade física seja a principal motivação. Neste caso, o que me atrai é a possibilidade de perceber o invisível ao observador embarcado em carro ou ônibus. Mesmo de bicicleta alguns detalhes se perdem. Pequenas surpresas no caminho compensam o suor que brota da testa. Foi numa destas saídas, de roteiro improvável e não pensado, em boa companhia, que pude ouvir o Itajaí-Açu. Ao ouvi-lo é que a sua forçada mudez se descortinou.
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Em geral, não o ouvimos. Na Beira-Rio, os carros vêm e vão com o Itajaí-Açu quase estático, como numa pintura. Faz parte da paisagem que, no dia a dia, damos as costas. A margem do rio fica restrita como área de passagem em que se permite parada só quando o trânsito empaca. O rito urbano não inclui contemplar. Em meio aos roncos dos motores, as águas passam silenciosas por baixo da Ponte de Ferro, pela Adolfo Konder, dançam entre a Prainha e o porto e tchau. Quando há observação, em geral, é por medo. Aos poucos, exceções ressurgem com esportes aquáticos, o Papai Noel que troca as renas por lancha ou Nossa Senhora, que em 12 de outubro passeia pelas águas barrentas. Prestamos atenção nele quando nova enchente se aproxima ou já está entre nós. Durante as cheias o rio se faz ouvir.
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Parei por um minuto para escutá-lo ao chegar a um plantão no Santa numa manhã recém-começada de domingo de enchente. Com a rua deserta, o posto de gasolina em frente fechado, só restou o bradar do rio gordo da cheia que, com força, jogava-se contra o barranco na curva logo depois da Ponte do Salto.
Foi por ali, perto daquela curva, que o ouvi num dia vulgar da semana passada, já era fim de tarde e o trânsito pesado estava um tanto distante – e só por isso perdeu voz. Os moradores daquela rua estreita no Salto têm trilha sonora constante. Talvez sejam as pedras salientes que contribuam com a sinfonia das águas. A música natural faz lembrar todo o tempo do rio que está ali perto, fonte de vida e de tragédias – mesmo que não seja ele o culpado. Às vezes esqueço que também tenho vizinho parecido. O ribeirão da Velha é mudo. Faz-se perceber em alguma enxurrada, quando engorda e carrega toda sorte de tralha. Quieto, cor de doente, diria que está morto, não fossem as capivaras e lontras que de vez em quando o usam como estrada natural. Alguns pescadores – por falta de opção, quero crer – desafiam o bom senso lançando varas e até tarrafa no ribeirão – preferencialmente perto da saída de algum esgoto. Sinal de que há peixe por ali. Outro dia ouvi barulho de água vindo do ribeirão num raro momento de silêncio urbano. Mas era um esgoto que ainda não tinha percebido. Estava escondido pelo mato e foi descortinado na última chuva.
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Agora sei que o Itajaí-Açu não é mudo. Prestarei mais atenção. Ele tem muito a dizer.