O lugar era tão frio quanto as pessoas que trabalhavam naquele prédio. O ar pesava. O corredor branco ecoava o vazio e os carmas de quem já passara por ali. Assassinatos, tráfico de drogas, aliciamentos, estupros, pensões não pagas. Eu queria fugir, mas tinha de ficar ali e esperar. Encostada na parede, estava presa. Os ossos do ofício que os jornalistas têm de carregar nem sempre são leves.
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Com óculos escuros sobre a cabeça e lábios finos cerrados, um homem alto, vestindo negro, passou com um molho de chaves grossas pendendo na mão direita. No fim daquele corredor de más memórias, escolheu uma das chaves, encaixou-a em uma abertura. Um estalo e ele pôde girar uma barra de ferro. Atrás da grade, no chão, uma poça de sangue. De algum lugar, do alto, gotejava mais. Um pequeno riacho vermelho na cela. Impávido e ereto, o homem frisou que o vagabundo deveria sair de lá.
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Com passos pesados e trôpegos, postou-se em frente à régua com números grandes. O olho verde me olhou com espanto. A pele roxa e inchada cobria o outro. Sem cabelos, ostentava na testa ranhuras fundas. Como um pé que vinca a areia, uma botina lhe marcou a cara na noite anterior, enquanto estava caído. Há quase 12 horas, sangrava. Arranhões, roxos e rasgos se espalhavam pelo corpo precariamente coberto por um pijama listrado. Ele foi arrancado da cama, à sombra da lei. Nos pés, chinelos de borracha rasgados. As mãos que dias antes projetaram várias vezes uma barra de ferro contra o próprio colega de trabalho, estavam, agora, sem ação. Argolas prateadas cerceavam qualquer movimento. Ele esperava a primeira pergunta.
Mas perguntar o quê? Bloco de anotações, caneta e gravador fingiam. O dia prometia ser de rotina, mas aquela prisão me levou para 60 quilômetros de onde pensei que passaria oito horas daquela quinta-feira. Precisei perguntar o que não queria. O que não sabia. Mas me mantive de pé naquele corredor úmido, olhos secos. Às vezes jornalistas precisam fingir que não sentem. Fiz o que precisava.
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Perguntas feitas, respostas gravadas. Após pisar pela primeira vez em uma delegacia, saí carregando as marcas daquele chute na testa e o impacto da barra de ferro nas costas. O assassino confesso levará para sempre o arrependimento da loucura momentânea – ou não – para quitar uma dívida. E o homem golpeado que então jazia no hospital, a morte.