Maria faz tudo sempre igual. Faça chuva ou lua, acorda às três e meia. Levanta, lava o rosto, ajeita o cabelo castanho. Passa creme no rosto pálido com leves batidinhas. Checa as olheiras. Põe água para esquentar, corta o pão. Passa o café no coador de pano, enche a garrafa térmica, completa a fatia com margarina. Na xícara, pouco leite, menos açúcar, muito sono de uma rotina sempre igual.
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São quatro horas e o ônibus passa no ponto em cinco minutos. Precisa correr para não perder a condução. Sem lugar, não pode sentar. Mas ficar em pé com seu um metro e cinquenta no ônibus em movimento não é fácil. Encontra outras Marias. O dia ainda está escuro, pegam a segunda carona paga. Desembarcam e atravessam a rodovia onde já perderam várias Marias. Na estrada escura, pouco poste, nenhuma passarela.
Às cinco a máquina começa a roncar. Os filhos ainda estão em casa, também roncando. Eles despertam dali uma hora e meia. Sozinhos acordam, levantam, se vestem, penteiam os cabelos, bebem o café pronto, colocam o uniforme e vão a pé para a escola. Ela costura o sustento da casa. A máquina gira no ritmo de uma vida que não tem o direito de parar por qualquer dor, gripe ou cansaço. Precisa continuar. É o único salário que sustenta três vidas, dois cachorros e uma casa.
Seguiu o caminho dos irmãos mais velhos quando Blumenau era o principal polo de empregos. Largaram o campo, cidade pequena que só prometia futuro de calos por dentro e por fora. Terminou o ensino fundamental, fez o médio em escola de adultos. Queria faculdade, não deu. Tratou de aprender a lidar com o que tinham a oferecer. Vida proletária em frente à máquina.
Às oito e meia, primeira parada. Arroz, feijão, salada, carne simples. Almoço ajustado ao raiar forçado enquanto a cidade ainda levanta dos lençóis e cobertas que passam pelas mãos de Maria. Em um pedaço de hora, ela volta. Toma pouca água porque não pode ir ao banheiro sempre que precisa. A produção não pode perder. Tratou de fazer almofada para a cadeira dura. Aprendeu exercício para evitar o destino de tantas Marias: dor na mão, braço dormente, ombro inflamado, pescoço torto. O corpo cobra o preço que o salário não cobre de olhar para baixo um terço das vinte e quatro horas em seis dias da semana. Mas a coluna grita. Não deu para evitar.
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No início da tarde o apito berra. Dois ônibus cheios na volta para casa. Sobe dois morros com a marmita na mão para as crianças. Eles já voltaram da escola. Descansa o que dá. O segundo turno começa: louça na pia, roupa no tanque. Chão sujo, mesa limpa. As crianças precisam estudar.
O dia escurece, mais um que se fecha. Dorme quando o jornal começa. Bom, Maria, não sonhar que ainda seguirá trabalhando depois de aposentada. Antes de parar quer reformar a casa que nunca viu salário sobrar no fim do mês. Vai ser garantia mínima de conforto na velhice. É bom não imaginar que ainda vai ter de pagar imposto de renda sobre os dois modestos salários, saldo das três décadas de operária. Tampouco que será roubada pelo sistema de previdência nos seis primeiros meses de aposentadoria. É bom Maria sonhar que a vida será boa quando a máquina não precisar mais roncar com o toque do pé dela e o braço poderá descansar. É bom sonhar, Marias, Anas, Josés, Pedros.