Nos últimos dias, entre ares de curiosidade, graça e assombro, circulou pela internet uma página com uma série de fotografias post-mortem, com o perdão do latim. Não sei por que diabos isso foi lembrado agora, assim de repente, mas vamos nessa.
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Pra quem não viu ou mesmo pra quem não teve fibra de olhar as imagens com medo de sonhar com a bisavó de noite, o que de resto é algo bastante compreensível, posso explicar: diz respeito a uma prática bastante comum no século 19 que consiste em fotografar um ente querido que acabou de falecer, às vezes abraçado com os vivos como se nada tivesse acontecido ou mesmo com o ar casual de quem está no bar assistindo seu time vencer a partida pelo placar de dois a zero, com o jogo sob controle.
O procedimento de registrar um ente querido logo após a morte, na verdade, foi bastante comum em vários momentos da história da humanidade: basta pensar nas máscaras mortuárias, por exemplo, que desde Julio César, o imperador romano, e não o goleiro da Seleção, pretendiam eternizar os traços do rosto humano através de uma técnica que utiliza gesso, cera e muita força de vontade.
No século da fotografia, mais exatamente a partir do ano de 1839, com a invenção do daguerreótipo, as pessoas basicamente ficaram viciadas nisso. O equivalente hoje seria o gênero fotográfico “beijinhos para o espelho enquanto ninguém vê”, embora todo mundo veja na internet depois. E digo mais: daqui a uns 150 anos, se tudo der certo, ou seja, se os Estados Unidos pararem de querer fazer guerra com todo mundo e a coisa no Oriente Médio der uma acalmada, as pessoas terão acesso às nossas contas no Instagram. Cada louco, e cada época, com as suas manias.
Uma das reações despertadas hoje pelas fotografias post-mortem é a de que “ai, gente, normal né”. Calma lá. Bem de perto, como diria o nosso poeta, nada é muito normal. Se a reação contrária, que por falta de melhor nome podemos chamar de “coisa mais bizaarraaaa!!”, tem sua parcela de equívoco justamente por desconhecer as particularidades da cultura dos outros (e por consequência da nossa, que faz de tudo pra esconder a morte), também não leva muito longe sair dizendo por aí que fotografar defunto é uma coisa normal.
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Pra mim, normal é fazer fotografia 3×4 pra colar no RG, e olhe lá! De resto, era comum também no século 19 casar com gente escrota, comercializar seres humanos e cuspir dentro do bonde. Normal isso?
E era comum morrer, afinal. Crianças, sobretudo, morriam a rodo. Hoje é como se ninguém morresse mais. Baudrillard, do jeito histérico dele, chegou a dizer que devemos recuperar o direito de morrer, e não o de ficar vivo.
O que nos importa é que os estúdios fotográficos, por sua vez, já que o capitalismo também ficou sendo cada vez mais normal, aos poucos foram se preparando para fotografar defuntos e assim “possuir a verdadeira semelhança do objeto finado”, segundo a publicidade de um estúdio meio chique da época. Como parte de seus serviços, os estúdios passaram a anunciar os “retratos a domicílio de defuntos”, que geralmente eram feitos 1) no leito de morte, 2) na sepultura ou 3) com o morto disfarçado de vivo, maquiado e posicionado como se desta vida ainda fizesse parte, sendo este último, pelo que notei, o item mais assustador.
Isso porque, curiosamente, nossa sociedade se assusta mais com um morto que parece vivo do que um vivo que parece morto, e essa inversão de valores não me parece lá algo muito inteligente. Tem também o morto que parece morto, coisa que, justiça seja feita, não nos causa maior espanto, embora isso não signifique que consideramos a imagem agradável.
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Basta prestar atenção no clima dos velórios. É mais gente comendo biscoito do que, por assim dizer, olhando no olho da morte. Repudiamos qualquer experiência da morte. Os cemitérios de hoje nem tumba têm, mais parecem o anúncio da chegada da primavera. De minha parte, seja como for, o que causa verdadeiro espanto são os vivos que parecem vivos…
E se o leitor considerar que o tema está muito pesado para uma segunda-feira, lembremos da máxima de Lacan: faz bem pensar que vamos morrer.