Quem vigia os vigilantes? A frase se tornou famosa em inglês (“who watches the watchmen?”) com a clássica HQ Watchmen, escrita por Alan Moore e ilustrada Dave Gibbons; mas é na verdade uma das muitas variações da original em latim, “quis custodiet ipsos custodes?” – que pode ser traduzida também como “quem guarda os guardiões?”, “quem fiscaliza os fiscalizadores?”, e assim por diante. Geralmente, o questionamento se refere a ditaduras, governos tirânicos, organizações policiais violentas. Quando os “vigilantes” passam dos limites, quem terá poder ou autoridade para contê-los?
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Na era das redes sociais, podemos pensar em uma nova variação: quem cancela os canceladores? E não é exagero nem alarmismo: é cada vez mais forte a chamada cultura do cancelamento; em que qualquer deslize, frase infeliz ou erro honesto pode levar à destruição de reputações ou carreiras construídas ao longo de anos.
Cada vez mais, vemos celebridades pisando em ovos ao conceder entrevistas; personalidades cercadas de assessores cujo trabalho é basicamente evitar que algo repercuta mal na internet; influencers se desculpando, em meio a lágrimas, por brincadeiras feitas no Twitter ou no Instagram. O BBB 21, atual edição do Big Brother Brasil, vem sendo chamado de “BBB do cancelamento” – cancelamento esse que acontece dentro da casa, com cada grupo de participantes “cancelando” o outro; e fora do reality show, com as carreiras de alguns dos artistas confinados derretendo sob o escrutínio do público.
– O cancelamento é um movimento coordenado, muito típico das mídias sociais, justamente pela facilidade e agilidade da disseminação de informação nas redes – diz Elis Monteiro, especialista em marketing digital e gerenciamento de crises digitais, professora da FGV, IBMEC e ESPMO. – Esse movimento quase sempre acaba virando uma bola de neve: em determinado ponto, muitas das pessoas envolvidas nem sabem como a história começou, o que desencadeou o cancelamento, mas continuam aquele movimento de ódio. Para elas, se torna algo até divertido.
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Segundo Elis, a rede mais complicada é o Twitter, por ser a mais ágil, viral e nichada: é mais fácil que um grupo de pessoas que ama ou odeia alguma coisa ou alguém propague rapidamente informações – verdadeiras ou falsas – a respeito daquela coisa ou pessoa. A especialista também comenta a questão do “exposed”, que, nas palavras dela, é “assustador”:
– No exposed, alguém diz, sem apresentar provas, que você fez ou faz alguma coisa, e ninguém questiona – ela explica. – O exposed cria uma onda assustadora de linchamento, sem a menor chance de defesa.

Sem citar nomes, Elis conta a história de uma cartunista que, após vencer um concurso na agência onde trabalhava, foi acusada por um concorrente derrotado de ter atitudes racistas no dia-a-dia. O autor do exposed não apresentou provas, mas a artista foi cancelada nas redes sociais, tendo seu Facebook e Instagram – por meio dos quais divulgava seu trabalho – deletados, além de ter perdido o emprego na agência. Meses depois, ao tentar retornar às redes com outro nome, a cartunista foi descoberta pelos “justiceiros” das redes sociais; e novamente teve seus perfis apagados.
Típico das redes, fenômeno é impulsionado por usuários jovens
Elis Monteiro afirma que o cancelamento costuma ser provocado ou pelo menos iniciado por usuários muito jovens das redes sociais; e inclusive criou um termo para eles: “jovens bárbaros”.
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– Na maioria dos casos eles têm algo entre 15 e 20 anos; e criam movimentos de ódio absoluto – relata. – Eles inclusive cancelam uns aos outros: num dia você é o cancelador, no dia seguinte se torna o cancelado. Eles apagam qualquer pessoas que não concorde com eles. É a morte do debate. Você vê isso inclusive dentro dos movimentos progressistas: há feministas cancelando feministas que defendem outra corrente feminista que não é exatamente igual à que elas defendem.
Segundo a psicóloga Graziela Judith Bonatti, a cultura do cancelamento deriva da maneira como a sociedade lida com emoções como medo, tristeza e raiva:
– Em geral, essas emoções são evitadas e negadas; e, quando evitamos ou negamos algo, perdemos a oportunidade de aprendizado, de ressignificação: ficamos cristalizados e rígidos em comportamentos que visam a autoproteção – ela explica. – Mas não podemos sair por aí aniquilando ou cancelando tudo o que é diferente do que consideramos certo. Esse pensamento dicotômico entre certo e errado, bom e mau, gera intolerância e desrespeito. Afinal, qual ponto de vista detém todas as verdades?
– A ação do cancelamento é uma tática infantil, que lembra muito a famosa “birra”: para evitar o incômodo ou o mal-estar, gritamos e tapamos os ouvidos para aquilo que não queremos admitir ou aceitar – a psicóloga prossegue. – Tentamos tirar as partes do mundo, ou os outros, que nos incomodam ou com os quais simplesmente não queremos lidar. A partir daí, passamos a viver em um mundo ideal dentro da nossa fantasia. Mas a vida é o que é, e não é necessariamente como nós queremos.
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Além de fomentar a intolerância, situações ligadas ao cancelamento têm características perigosas, como a generalização e a falta de contexto: em 2019, o New York Times produziu um vídeo (veja abaixo) comparando a cultura do cancelamento a uma situação irracional de perseguição, em um cenário ambientado na Idade Média. No vídeo, a vítima é julgada por “ter dito algo ofensivo onze anos atrás” – uma crítica ao fato de que diversas celebridades já foram canceladas porque alguém descobriu um post de 2006 contendo alguma declaração questionável. “Nós somos perfeitos!”, declaram os personagens do vídeo, ao defender seu “direito” de julgar a pessoa a ser cancelada.
– Eu tenho clientes no mercado editorial, e vejo que obras antigas estão sendo canceladas; autores estão sendo cancelados por ter escrito, há décadas, coisas que eram perfeitamente aceitáveis e corriqueiras na época deles – conta Elis. – E as editoras que publicam esses livros estão sendo canceladas também. É como no caso de grupos que vasculham tweets antigos de celebridades e influencers para descobrir algo que sirva como motivo para um cancelamento; sendo que a pessoa pode já ter um pensamento totalmente diferente daquilo hoje em dia. As pessoas perderam completamente o bom senso.
– O cancelamento, assim como o preconceito e todas as atitudes de intolerância, tomam uma parte pelo todo – explica a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – Ou seja, tomamos um ato isolado, como uma fala, uma característica ou um comportamento pontual, e rotulamos, julgamos de acordo com as nossas métricas. Ignoramos a pluralidade da pessoa e reduzimos a pessoa àquela fala, característica ou comportamento.
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A partir disso, ela argumenta que o cancelamento pode até mesmo ser considerado um tipo de violência psicológica:
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– As torturas psicológicas têm o intuito de desintegrar as personalidades, reduzir o outro a nada – argumenta. – E por que isso? Porque em algum momento o agressor se sentiu ameaçado e reagiu procurando destruir o outro, para não precisar mais lidar com esse incômodo. O cancelamento é diferente de a gente se afastar daquilo que nos fere ou faz mal: é uma tentativa de aniquilamento.
Ruim para os famosos; pior para os anônimos
Na opinião da especialista em marketing digital Elis Monteiro, o medo do cancelamento deve fazer com que os artistas procurem se manter, cada vez mais, dentro de um discurso ensaiado – e pode até mesmo prejudicar suas obras: ela cita o exemplo de um jovem escritor, transgênero, que foi cancelado porque o público não aprovou o final de um de seus livros, em que um personagem gay comete suicídio.
– O artista é sempre visto como influenciador, como alguém que tem que dar o exemplo – ela comenta. – Quando ele não corresponde a essa expectativa, os próprios fãs voltam as costas para ele. Ele é cancelado por não dizer ou fazer exatamente o que os fãs esperavam dele. Ele também é cancelado se não disser nada, se não se posicionar. E agora ele começa a perder o direito de decidir como sua própria obra vai ser. Quando um artista se sente tolhido por falar algo em sua obra ou em uma entrevista, o próximo não vai nem se arriscar a falar sobre esse tema; e assim você vai diminuindo o espaço para debate.
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Mesmo assim, ela afirma que o cancelamento costuma ser mais prejudicial no caso dos anônimos; ou dos influenciadores que estão dando os primeiros passos na carreira.
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– Porque o cancelamento de fato é o seguinte: uma horda de pessoas se une para fazer denúncias em massa contra um perfil, junto às ferramentas de mídia social – ela explica. – Você denuncia a pessoa por algum tipo de abuso, por fazer discurso de ódio, algo assim. Mas o Instagram, o Twitter, eles só suspendem as redes das pessoas muito famosas, não derrubam totalmente; e você consegue recuperar essa conta mais tarde. A Anitta já foi cancelada umas 60 vezes; ela já aprendeu a lidar com o próprio cancelamento. Pessoas menos influentes nas redes estão mais suscetíveis a ter suas contas deletadas de vez. Elas não têm equipes para defendê-las, não têm advogados caros. Quando você tem um “colchão de proteção” ao seu redor, seu cancelamento vai ser contornado com mais facilidade.
– Eu acho que essa cultura reflete o momento que estamos vivendo na sociedade como um todo – Elis opina. – Estamos com muita raiva armazenada; com a pandemia, com os problemas políticos que temos enfrentado desde 2013… Pensando no exemplo da Karol Conká: nós já vimos, em edições anteriores do BBB, personagens que fizeram coisas tão ruins ou piores do que as que ela está fazendo, mas parece que agora isso ganha um peso maior, uma relevância maior. É como se esse momento tão complicado da sociedade criasse uma necessidade de culpar alguém, de vilanizar certas pessoas. O que é um enorme problema.