A garoa fina que cai sobre o asfalto na manhã de um sábado chuvoso não inibe os motoristas de aproveitarem o trecho duplicado da BR-470, em Gaspar, e pisar mais fundo no acelerador. Uma movimentação atípica na vala que divide as quatro pistas, porém, chama a atenção mesmo dos mais apressados: um casal e uma mulher com um bebê no colo mexem em uma pequena capela disposta ao lado de uma cruz. O material prateado, recém-pintado, ganha destaque entre a frieza cinzenta do asfalto.
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Não é incomum encontrar cruzes à beira da rodovia. Elas simbolizam as vidas perdidas em acidentes que aconteceram próximo ao trecho em que foram fincadas. Se considerar os 889 óbitos contabilizados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) ao longo de toda e extensão que corta o Vale do Itajaí nos últimos 10 anos, são poucos objetos em comparação à quantidade de tragédias (o levantamento da PRF não inclui os que faleceram nos hospitais, por exemplo).
Por trás de cada uma delas, há histórias de pessoas que jamais serão esquecidas por quem fica. É o caso de Eduardo Milani, que tem a foto estampada na capela feita de panela de freio de caminhão, ao lado da cruz prateada, próximo ao Km 27 da BR-470. A mulher com o bebê de sete meses no colo é a irmã dele. O casal, os pais. Mariluce Terci Milani, 47, e Antônio Milani, 49, viajam anualmente de Salto Veloso, no Meio-Oeste catarinense, a Gaspar, no Médio Vale do Itajaí, para fazer a manutenção dos objetos.
São mais de 300 quilômetros e seis horas de percurso para chegar ao exato ponto em que o filho morreu em maio de 2012, aos 21 anos. Eduardo conduzia um caminhão carregado de leite a Itajaí quando se envolveu em uma colisão frontal. Era a primeira viagem dele como caminhoneiro, profissão que sonhou desde criança, revela a mãe.
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Batidas de frente são as que mais matam na BR-470
A colisão frontal é o tipo de acidente que mais mata na BR-470 (52% do total de óbitos), explica o chefe de Comunicação da PRF, Adriano Fiamoncini, e é motivado por duas situações, na maioria das vezes: ultrapassagem em local proibido ou na hora errada. Por isso, na opinião de Fiamoncini, quando a duplicação terminar, vidas serão poupadas, já que as invasões à contramão deixarão de existir.
— A duplicação vai evitar o principal tipo de acidente que mais mata. Mesmo que a velocidade dos carros aumente (por conta das pistas em melhor estado), esse índice (de mortes no trânsito) deve cair — analisa.
Outra condição que favorece a quantidade de mortes na rodovia (além da imprudência) é o fato dela passar por diversos pontos urbanizados, e não em áreas rurais, como seria o correto. Por isso, avalia Fiamoncini, o trecho mais fatal da BR-470 são os 10 primeiros quilômetros, em Navegantes. Lá, 82 pessoas morreram entre janeiro de 2011 e junho deste ano, período em que os dados foram coletados.
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A região é uma das que mais possui moradores ao redor da via, portanto é maior a circulação de pedestres, ciclistas e motociclistas que precisam cruzar a estrada para atividades básicas, como ir à padaria, supermercado ou farmácia.
— Quando (esse público) se envolve em acidente, quase sempre é grave. Antes a BR era uma via rural, mas hoje virou uma espécie de avenida em vários trechos, sendo engolida pelas cidades, que cresceram ao redor — enfatiza o policial rodoviário.
São tantas ocorrências que a Confederação Nacional de Transporte apontou a BR-470 como a segunda rodovia que mais teve acidentes com vítimas em 2020 no Estado (atrás apenas da BR-101).
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De acordo com os registros da PRF entre janeiro de 2011 e o fim do último semestre, a instituição atendeu 21,5 mil acidentes, com 17.883 feridos e 889 mortos nos quase 200 quilômetros da 470 entre Navegantes e Pouso Redondo. Ou seja, todos os dias cerca de seis colisões movimentam policiais, socorristas, guincheiros e equipes médicas.
Conforme um estudo publicado no ano passado pelo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base em dados de 2014, cada acidente em rodovia federal custa à sociedade R$ 261 mil. Os valores mais significativos são em relação aos gastos em hospitais e, principalmente, ao tempo que a pessoa fica afastada do trabalho por conta dos ferimentos (o que recai sobre a previdência social e também sobre a família, em função do empobrecimento). Quando há morte, o custo médio sobe para R$ 664 mil.
Acidentes com óbitos representaram menos de 5% do total de ocorrências no levantamento do Ipea, mas resultaram em cerca de 35% dos custos totais, indicando a necessidade de intensificação das políticas públicas de redução não somente da quantidade das colisões, mas também da gravidade delas.

Famílias que não têm direito ao último adeus
Eduardo sequer teve chance de ir ao hospital, morreu preso às ferragens. Foi enterrado no município que cresceu, onde vive a família até hoje. Não teve oportunidade de ver a irmã se formar na faculdade ou o irmão se tornar mecânico. Tampouco presenciou o nascimento dos três sobrinhos. O mais novo foi naquele sábado chuvoso de agosto, pela primeira vez, junto com os avós e a mãe, ao local em que o tio deu o último suspiro. A primeira sobrinha, que hoje tem oito anos, refere-se a Eduardo como uma “estrelinha no céu”.
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— Demorei a entender, a aceitar, precisei de muita fé (para superar). Hoje entendo, mas jamais vou esquecer meu filho. É uma perda muito dolorosa, um pedaço arrancado do meu peito — desabafa a mãe.
Desde a perda do primogênito, Mariluce e o marido vão até a cruz uma ou duas vezes ao ano. Sob chuva ou sol, verão ou inverno, o casal permanece às vezes mais que as seis horas necessárias para chegar por conta do trânsito, mas não abandona a missão. Ela pretende visitar o local até ficar “bem velhinha”.
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A lata de spray sempre vem junto para o retoque na cor da cruz e da capela que protege a foto do rapaz, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e flores artificiais. A mãe acredita que as idas são uma forma de homenagear Eduardo, de não deixar que a passagem dele pela vida dos demais seja apagada pelo tempo. Ela não quer que a história do filho se resuma a uma estatística, a mais um número negativo da BR-470.
Eduardo era mais que isso. Como eram tantas outras vítimas. Quantas mais terão sonhos interrompidos por tragédias evitáveis?
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