Deus ainda não havia chegado.

Esperavam por Ele:

o pai e a mãe,

o filho e a filha,

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o padrinho e a madrinha,

o vovô e a vovó,

o cunhado e a cunhada,

o genro e a nora,

o neto e a neta,

o primo e a prima

e assim por diante.

O Pai era o convidado especial para uma marcha com a família brasileira. Nome principal em todo o material de divulgação: folderes, cartazes, página oficial nas redes sociais. E sua presença estava confirmada segundo a assessoria celestial.

A prima era a irmã do primo, filha do tio e da tia. Não confundir com as primas, como são chamadas as mulheres da vida na cidade natal do pai. Estas jamais seriam convidadas, é bom que fique claro.

O pai (não confundir com O Pai) é que organizou o encontro e redigiu um “manifesto da família pela liberdade”. Tentou falar diretamente com o Todo-Poderoso. Não tolerava aqueles assessores angelicais, seminus e de asinhas brancas. Despertavam nele um sentimento que não conseguia explicar.

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O manifesto, que seria entregue ao Pai e aos militares, dizia o seguinte: “Os comunistas ameaçam a família brasileira. Nas maternidades, há quem vista bebês de vermelho. O certo seria ou só azul ou só rosa. Nas escolas, os professores desviam nossas crianças das leis da natureza, não são mais exemplos para futuros machos e homens de família. Na universidade, doutores em gramscismo bolivariano fazem a cabeça dos jovens. A desordem é generalizada”. Para terminar, contou um exemplo do que considerava mais grave: “No meu restaurante, agora qualquer um pode entrar de boné e com a camisa para fora das calças. E nada pode ser feito a respeito!”.

Enquanto Deus não aparecia, o pai colocava ordem (e progresso) na fila. Reprimiu a pequena neta, que insistia em brincar de marcha soldado de mãos dadas com outra menina.

O filho mais novo não foi convidado. Aos 25 anos ainda não se casou, nem namorada fixa ele tem. Estuda Psicologia, o que já não era profissão de homem. E ainda flerta com as Artes Cênicas, aquele antro de efeminados e comunistas maconheiros. Por isso não estava na lista.

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Na carta-convite, além de definir o traje, o pai pediu que todos viessem de barba feita, inclusive O Pai. Sabia que era um pedido ousado, mas ninguém deveria associar a Sua imagem e semelhança com barbudos de foice e martelo.

A agenda do Onipotente estava bem cheia naqueles dias. Precisava encontrar o avião da Malaysian Airlines e depois dar um pulo na Crimeia. Mas teve uma ideia para o Brasil.

A marcha se deslocava pelo Elevado Costa e Silva, também conhecido como Minhocão, ponto turístico da cidade de São Paulo. “Modelo arquitetônico de uma nação, monumento com nome simbólico de um herói”. Era o que estava escrito na página na internet que marcava o número de pessoas confirmadas no evento.

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– Da liberdade não abro mão, pela família, eu quero intervenção – gritavam os manifestantes marchadores.

Eis que, não os militares, mas o próprio Pai, o Todo-Poderoso interveio naquele momento. Desceu dos céus cercado dos arcanjos, todos com capas coloridas, como a de José.

Ao som de Madonna e Diana Ross, convidaram todos a ocupar o espaço público e dançar.

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Ninguém foi embora e a festa só acabou na madrugada seguinte, debaixo do viaduto. Com a bênção divina, o que seria uma marcha à ré no Minhocão, acabou se transformando na famosa balada do Buraco da Minhoca.

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