Exibida em 2009 na TV Cultura, Trago comigo surgiu como uma série em quatro episódios, com pouco menos de uma hora cada um. Nem parece: sua versão condensada (de 84 minutos), que chegou nesta semana aos cinemas brasileiros, tem bom ritmo narrativo e um arco dramático fechado, funcionando plenamente no formato de longa-metragem. E, melhor ainda, estreia no circuito (em Porto Alegre, no CineBancários e no Espaço Itaú) em um momento político mais do que adequado.
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O tema é o mesmo de Hoje (2011), longa anterior da diretora Tata Amaral: a construção da memória dos anos de luta armada contra a ditadura militar instaurada nos anos 1960 no Brasil. Assim como a personagem de Denise Fraga em Hoje, o protagonista de Trago comigo tenta montar um quebra-cabeças que o trauma da violência institucional não permite completar.
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Telmo (Carlos Alberto Riccelli, em uma das melhores atuações de sua carreira) é um diretor de teatro. No início do filme, concedendo uma entrevista (primeiro indício de que estamos no terreno fértil no qual ficção e documentário se misturam), ele fica intrigado ao não conseguir lembrar dos tempos de perseguição, tortura e exílio. Resolve aproveitar uma oportunidade de trabalho usando a arte como terapia.
A montagem teatral que ele encena sobre o período tem apenas jovens no elenco – o protagonista da peça é uma representação do próprio Telmo, com a idade que ele tinha nas décadas de 1960 e 70 (quem o encarna é Felipe Rocha). O jogo de espelhos que se estabelece entre o Telmo atual e aquele grupo de intérpretes mais novos é rico no que revela sobre o olhar distanciado que as novas gerações mantêm sobre aqueles anos de repressão.
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Mais ricos ainda o são os depoimentos das vítimas reais dos militares apresentados em meio à narrativa ficcional: o recurso é arriscado devido à brusca mudança de registro, mas, em Trago comigo, cumpre papel decisivo para aproximar o espectador da realidade retratada.
Não há como não ficar comovido ao ver uma mulher narrando o momento em que, conduzida pela polícia, foi submetida a ouvir, de uma sala próxima, os gritos do marido que estava sendo assassinado. Outra entrevistada evidencia o quanto a dor que não passa pode tornar nebulosas as lembranças das vítimas – o que carrega de verdade a composição do protagonista, igualmente confuso em suas doloridas recordações.
Riccelli trabalha com habilidade o tempo cênico, usando silêncios para ressaltar a carga emocional que aquelas memórias carregam. O belo trabalho do montador Willem Dias, que inclusive usou cenas excluídas da série, dá o tempo adequado para o público absorver esse peso. Completa o ótimo pacote a fotografia assinada pelo craque Jacob Solitrenick, que aproveita as luzes e as sombras do palco para compor planos que metaforizam aquela era de trevas. Fica, aliás, a sugestão, reiteradamente manifestada pela plateia do debate que marcou a pré-estreia do longa, terça-feira, na Capital: depois da TV e do cinema, o projeto Trago comigo bem poderia ser estendido ao teatro – material não falta.
Sobre o fato de o filme estrear em boa hora: todas as citações a torturadores são abafadas por um ruído e uma tarja preta de modo a esconder seus nomes, procedimento que Tata Amaral justifica pelo fato de que nenhum foi condenado pelos crimes que cometeu. O que deixa claro que feridas estão abertas, escancaradas, 30 e tantos anos após a redemocratização. Mais do que isso, não faz dois meses que um dos deputados mais votados do país exaltou um torturador em uma sessão do Congresso acompanhada em rede nacional de televisão – e era o mesmo agente policial responsável por torturar vários entrevistados de Trago comigo, alguns destes autores das descrições de violência mais abjeta entre todas aquelas que são apresentadas no filme.
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É preciso, mais do que nunca, falar sobre o assunto. E entender a gravidade que sua falta de resolução representa.