O lageano Cristovão Tezza, 60 anos, já foi relojoeiro, membro da marinha mercante e morador da colônia anarco-teatral Vale da Utopia, na Praia da Pinheira, em Santa Catarina. Doutor em Literatura e escritor, foi recentemente escolhido pela Biblioteca Nacional como integrante da lista de 70 brasileiros que representarão o país na Feira do Livro de Frankfurt, maior evento literário do mundo, que ocorre entre 9 e 13 de outubro.

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A história de Tezza com Frankfurt vem de longe, desde a época em que ele lavava pratos para pagar suas contas na cidade, quando era trabalhador ilegal na Europa. Em entrevista ao DC por telefone, Tezza relembrou esta e outras histórias de sua vida, analisou os escolhidos para a comitiva, a transformação da prosa brasileira e do mercado editorial do país.

O que pensa sobre ter sido selecionado para representar o Brasil em Frankfurt?

Cristóvão Tezza ? Eu tenho uma longa história com Frankfurt, desde o tempo em que lavava pratos lá em 1970, 1975 (risos). Eu já estive no ano passado nesta Feira do Livro e agora liberaram a lista. Convidaram e eu aceitei. Achei muito interessante essa seleção, acompanho muita gente que foi escolhida ali.

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Está acontecendo uma grande renovação da prosa brasileira, que eu sigo mais de perto que a poesia e, realmente, é a nova geração que foi selecionada para participar. Em 1991 ou 92, fui para a Alemanha a convite da feira e, em 93 ou 94, o Brasil foi homenageado lá. Não me lembro quem foi na época, mas lembro que houve a sensação de que era uma lista muito oficial.

E, dessa vez, não. É uma lista que representa a literatura brasileira contemporânea mesmo. Isso é uma coisa muito boa. Sempre falta alguém (ou alguém vai a mais), é como a Seleção Brasileira: no futebol, cada um tem seu ponto de vista, mas é uma lista muito representativa da nossa produção literária atual.

Houve um afastamento do escritor brasileiro dos leitores?

Tezza ? Escrevi um livro chamado O Espírito da Prosa, no ano passado, uma biografia literária, em que eu digo que dos anos 1970 em diante, por uma série de situações, desde a implantação da ditadura, e de um certo esvaziamento dos espaços culturais e dos jornais pela censura, entrou com muita força no Brasil uma concepção literária de raiz formalista e estruturalista que era moda na época.

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Isso chegou via França e, por falta de alternativa, quem se apropriou do discurso literário foi a universidade, que concentrou a pauta literária brasileira, como acontecia em boa parte do mundo na época.

E isso durou até quando?

Tezza ? Foi um período de passagem. Depois dos anos 1990 e 2000, com o advento da internet, a modernização do Brasil e o esvaziamento do discurso dominante dos anos de 1970 e 1980, começou a surgir uma nova geração que está produzindo muito e que está crescendo visivelmente.

É só pegar, por exemplo, o Daniel Galera, com o Barba Ensopada de Sangue. É um romance que demonstra uma grande maturidade da prosa brasileira. Ou aquela menina do Rio Grande do Sul, a Luisa Geisler, fui da banca do Sesc que a premiou, você vê uma produção muito consistente de uma geração que não tem a memória daqueles anos. É uma gurizada que tá aí com 30, 40 anos, até menos…

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E a literatura é lenta, ela leva tempo para sedimentar. Houve uma poetização da prosa, tudo tinha que ser poético, muito autocentrado e a prosa clássica da grande tradição brasileira que veio do Lima Barreto, Machado de Assis, do Lins do Rego, ela deu uma parada total e agora está renascendo. A prosa é uma das almas poderosas da literatura moderna porque o grande objeto dela são os outros. Para escrever, você tem que prestar atenção aos outros.

Os escritores brasileiros querem escrever o que as pessoas não querem ler? Falta literatura nacional voltada para o entretenimento?

Tezza ? Olha, os livreiros muitas vezes só querem vender livro, então, é natural que alguns deles considerem que sim porque não estão preocupados com a qualidade literária. Mas há um aspecto comercial nesse ponto de vista, sim. O escritor brasileiro perdeu seu leitor exatamente ali na década de 1980.

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Se a gente pegar a lista dos mais vendidos de 1982, havia cinco livros na lista de grandes escritores brasileiros. Tinha Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Braga e mais dois que agora não me lembro – li agora pouco essa lista. Hoje isso não existe mais. Você não entra mais naquela lista, não tem acesso a ela. Isso se deve a vários aspectos. Os escritores brasileiros tinham leitores antes porque existia uma elite muito mais sofisticada, composta por 20% ou 10% da população, e o resto não tinha acesso ao livro.

O Brasil mudou e a nova classe média brasileira entrou também como produtora e consumidora no mercado cultural. Assim como os americanos dominam o cinema, a narrativa de raiz anglo-saxônica, com começo, meio e fim, passou a dominar o livro. A literatura brasileira é muito específica.

Se a gente for ver Erico Verissimo, Jorge Amado, tinham um contato forte com o leitor que realmente se perdeu. Mas entretenimento parece uma palavra insidiosa, parece que se o romance é bom de ler, ele é ruim, não é boa literatura, o que é mentira. Às vezes, as mesmas pessoas que dizem isso adoram os romances do Phillip Roth.

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O mercado editorial no Brasil está mudando?

Tezza – Muito. Está acontecendo a globalização do livro e ela é tão grande no Brasil que, até pouco tempo atrás, não tinha uma só editora estrangeira aqui, a produção era toda nacional, e hoje essas editoras estão disputando a tapa os selos nacionais. Tem a Apple e a Amazon, que entraram no mercado de distribuição e isso aumentou brutalmente a circulação do livro.

Hoje tem gente que vai ver o filme do vampiro e depois compra o livro, são muitos tipo de consumidores e esse é o preço que se paga. A literatura brasileira está num momento de transformação e vai haver uma reconquista do leitor brasileiro, disso eu não tenho nenhuma dúvida.

A nova geração está antenada com a produção internacional e tem uma relação muito interessante com a narrativa anglo-saxônica, que é dominante no mundo inteiro. Para sair do Brasil você tem que entrar no mundo de língua inglesa. Isso eu entendi quando meus livros foram traduzidos para o inglês. Enquanto você não faz isso, você não existe lá fora.

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Você já comentou que acredita que existe uma relação profunda entre a arte e a vida.

Tezza – Sim, isso é muito da minha geração. Digamos que na mitologia dos anos 1960 e 1970, para fazer arte, era necessário se autotransformar e transformar o mundo. É um projeto utópico, muitas vezes louco e desvairado (risos). Mas era o espírito do tempo: a arte como performance. Isso me deixou uma grande marca, uma marca no que eu faço. Mas as coisas mudaram, hoje vivemos tempos muito mais pragmáticos e objetivos. Ninguém está muito a fim de utopia. Às vezes é até bom isso, um pouco de realidade faz bem.

Seus narradores geralmente são classificados como confessionais, você concorda?

Tezza – É verdade. Tem uma diferença aí entre o confessional e o biográfico. O narrador da minha prosa tem uma tendência confessional, são vozes que se confessam. Tem muitos romances meus que funcionam assim, Juliano Pavollini, Uma Noite em Curitiba, A Suavidade do Vento. Mas isso não tem nada a ver com o lado autobiográfico. O único livro autobiográfico que eu fiz foi O Filho Eterno. O resto são apropriações de visões de mundo. Criar um narrador é criar um olhar sobre o mundo, original, singular.