No momento em que os argentinos veem um raro caso de presidente tomando posse ao lado de uma vice com quem tem afinidade – no caso, Mauricio Macri e Gabriela Michetti, que assumiram o governo na última quinta-feira -, o Brasil vive drama típico do país vizinho: as rusgas e até inimizades entre companheiros de chapa.

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A carta que o vice-presidente Michel Temer enviou na segunda-feira a Dilma Rousseff, em que oficializa seu rompimento com a presidente, remete a episódios inusuais no Brasil. As situações pontuais envolvem as relações difíceis de Getúlio Vargas com Café Filho e de João Figueiredo com Aureliano Chaves. No caso de Café Filho, ele tomou posse em setembro de 1954, em meio à comoção provocada pelo suicídio de Getúlio, em 24 de agosto. Montou uma equipe composta por políticos, empresários e militares de oposição a Getúlio. Soube-se, então, que ele se reunira com Carlos Lacerda, o grande desafeto do presidente. Aureliano, homem de temperamento explosivo, costumava tomar decisões controvertidas quando assumia como interino. Em 1981, o general Figueiredo enfartou, e Aureliano ficou 49 dias no poder. Nesse período, recusou-se a expulsar do país dois padres franceses favoráveis à reforma agrária. O Brasil vivia sob a ditadura militar (1964-1985), e a expulsão dos padres era uma exigência de quem mandava.

Na Argentina, não se faz necessário ir tão longe para recordar conflitos frequentes entre presidentes e vices. É quase uma tradição local a de desafetos ocuparem a mesma chapa e depois se desentenderem. Carlos Menem (1989-1999) rompeu com seus dois vices, Eduardo Duhalde (1989-1991) e Carlos Ruckauf (1991-1999). Em dezembro de 2001, Fernando de la Rúa renunciou um ano depois do vice, Chacho Alvarez, ter feito o mesmo, acusando o governo de praticar malfeitos – abriu-se, naquele momento, a maior crise econômica da história argentina e um dos momentos de maior fragilidade institucional. De la Rúa e Chacho haviam composto uma chapa anti-Menem, com a histórica União Cívica Radical (UCR), do presidente, e a novata Frente País Solidário (Frepaso), do vice.

Kirchnerismo sempre conviveu mal com companheiros de chapa

Passada a crise, instalou-se na Argentina o movimento conhecido como “kirchnerista”. Néstor Kirchner teve como vice-presidente o campeão de motonáutica Daniel Scioli. Os dois sempre se viram com desconfiança. Em 2007, elegeu-se a mulher de Kirchner, Cristina, acompanhada do vice Julio Cobos (UCR). Os dois se tornaram desafetos. O plano de Néstor e Cristina, de se revezarem no poder e assim contornarem a barreira constitucional a segundas reeleições seguidas, viu-se frustrado pela morte dele, em 2010. Cristina, então, concorreu à reeleição em 2011, tendo o ultrakirchnerista Amado Boudou como vice. Envolvido em suspeitas de corrupção, Boudou deixou de ser um dos principais aliados de Cristina, e ela passou a evitar o companheiro de coalizão. No final da tarde de sexta-feira, ele foi proibido de deixar a Argentina em razão dos processos a que responde.

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No último dia 22, Mauricio Macri, desafeto de Cristina, elegeu-se presidente vencendo Daniel Scioli, aquele que havia sido vice de Néstor Kirchner e que sempre contou com a desconfiança do “Casal K”. Para aceitá-lo, Cristina lhe impôs, como companheiro na chapa governista, Carlos Zannini. Só então ela embarcou na sua campanha.

Os analistas já previam: o casamento Scioli-Zannini seria fugaz caso se elegessem. A composição indigesta se tornou necessária porque Cristina exercia um poder centralizador. Não preparou um sucessor. Na origem de tudo, havia o antigo plano dela e do marido de se alternar perpetuamente no poder.

– O vice costumava ser figura apenas decorativa nos governos anteriores aos da ditadura. Hoje, há muita divisão entre facções diferentes e ambiciosas. O peronismo mesmo é muito dividido internamente. Depois da redemocratização, os partidos voltaram despreparados, desestruturados, e isso não se dá só na Argentina. Veja o Michel Temer já claramente montando sua equipe – diz o cientista político argentino Mario Gaspar Sacchi.

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Benjamín Bogado, analista político paraguaio e doutor em direito, escreveu 15 livros sobre acesso à informação, governabilidade, transparência e política. E tem uma opinião geral sobre a difícil convivência entre o presidente e o vice, que serve para a história argentina e para a atualidade brasileira:

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– A ausência de uma tradição de coalizões partidárias que respeitam espaços e proporções explica muitos dos problemas surgidos entre presidentes e vice-presidentes eleitos em países latino-americanos. Governos instáveis e com escassa tradição democrática se transformam em espadas de Dâmocles (alusão a uma lenda grega que trata da insegurança de quem tem o poder e pode perdê-lo a qualquer momento e por qualquer contingência, tendo a espada sobre a cabeça).

Cientista político argentino, Fabián Bosoer atribui as desavenças entre presidentes e vices ao hiperpresidencialismo. Diz que o vice se torna competidor em momentos de crise (leia entrevista abaixo).

Desacertos

Menem x Duhalde

Menem x Ruckauf

De la Rúa x Chacho

Kirchner x Scioli

Cristina x Cobos

Cristina x Boudou

“Quando o presidente está em declínio, fica um vazio perigoso”

Cientista político, historiador e escritor, o professor universitário argentino Fabián Bosoer comentou, por telefone, a “maldição dos vices” argentinos e suas motivações.

A Argentina tem uma tradição de problemas entre presidentes e vice-presidentes. A que o senhor atribui esse histórico conturbado?

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São casos diferentes uns dos outros, que têm peculiaridades, diferentes motivações.

Mas quais os pontos em comum para essas coincidências?

Há duas questões a serem observadas. Uma é a institucional. O vice-presidente, institucionalmente, complementa a figura presidencial. Mas é opaco. Quando, por algum motivo, aumenta sua visibilidade, ele cresce e se torna um competidor. Isso ocorre principalmente quando há aliança. Tem a ver também com o hiperpresidencialismo.

Por que com o hiperpresidencialismo?

O presidencialismo implica, paradoxalmente, fortaleza e fragilidade. O presidente tem poderes e tem demandas. Quando está por cima, o vice-presidente é sua sombra. Quando o presidente está em declínio, fica o vazio perigoso, e o vice deixa de ser um complemento. Torna-se um competidor. Isso ocorre na Argentina e também pode ocorrer no Brasil.