Uma criança de nove anos que vive no Mato Grosso conquistou na justiça o direito de ter o nome e o gênero sexual alterado. Ainda que não seja exatamente igual, a notícia me fez lembrar do filme Minha vida em cor-de-rosa (Ma vie en rose, Bélgica/França/Inglaterra, 1997). Nele, o diretor Alain Berliner mostra a história da Ludovic, sete anos, o caçula da família Fabre que em uma festa em casa se maquia todo e veste roupas femininas para receber as pessoas. Seriam os primeiros sinais da transgeneridade, quando o gênero e/ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas ao designado no nascimento, ou seja, escrito no papel.

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No caso da criança matogrossense, coube ao juiz Anderson Candiotto, da Terceira Vara da Comarca de Sorriso, julgar procedente a ação interposta pela 1ª Defensoria Pública de Sorriso. A decisão teve como fundamento o fato de que o menino nasceu com anatomia física contrária à identidade sexual psíquica. Mas todo o processo não transcorreu da noite para o dia. A ação chegou ao judiciário em dezembro de 2012, que definiu assistência judiciária gratuita e a realização de um estudo psicossocial do caso.

A criança, assistida por familiares, foi encaminhada ao Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP/SP. Ali, depois de acompanhamento, recebeu o diagnóstico de transtorno de identidade sexual na infância. Em agosto de 2015, foi ouvida na modalidade de Depoimento sem Dano, que consiste na oitiva de crianças por um técnico (psicólogo ou assistente social) em uma sala especial, conectada por equipamento de vídeo e áudio à sala de audiência, em tempo real, onde o juiz por um ponto eletrônico direciona as perguntas a serem feitas à criança.

Conforme o magistrado, ¿a personalidade da infante, seu comportamento e aparência remetem, imprescindivelmente, ao gênero oposto de que biologicamente possui, conforme se pode observar em todas as avaliações psicológicas e laudos proferidos pelo Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Núcleo de Psiquiatria e Psicologia Forense do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP/SP, único no Brasil que exerce estudos nesse aspecto, evidenciando a preocupação dos genitores em buscar as melhores condições de vida para a criança¿.

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A decisão foi fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana disposto na Constituição Federal, art. 1º, inciso III, que envolve tanto valores materiais bem como valores de caráter moral. O juiz considerou ainda jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) e enunciados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Tanto quanto o judiciário que se pautou pelo princípio constitucional, duas situações parecem relevantes: a postura da escola e a resposta dada pela família. Ao perceber o comportamento da criança em sala de aula, os professores chamaram os pais para conversar. E a família aceitou, indo também em busca de ajuda. Sem deixar-se contaminar por vergonha ou preconceito.

* Ângela Bastos é repórter especial do DC, jornalista Amiga da Criança (Andi/Unicef). Especialista em Metodologias para o Atendimento de Criança em Situação de Risco e em Políticas Públicas (Udesc)