Uma série de relatos de maus-tratos levou a Polícia Civil a investigar um Centro de Educação Infantil (CEI) de Joinville. As denúncias dos pais chegaram a pelo menos três canais diferentes e abordam desde agressões físicas a suspeitas de falta de lanche na unidade.

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A reportagem teve acesso a um dos boletins de ocorrência registrados. No documento, a mãe de um menino de 3 anos descreve que o filho começou a reclamar de “tapas” sofridos por parte de profissionais que atuam no local.

Com exclusividade, o AN acessou áudios e vídeos em que as crianças dizem aos pais que a “profe é chata”, “briga” e “bate”. Uma delas, filha de Joice, diz que a “titia não dá a minha fruta”. Nas imagens, em duas filmagens diferentes, os pequenos aparecem apontando a cabeça, o braço e o bumbum, partes do corpo em que teriam sido agredidos.

Joice*, registrou um boletim de ocorrência no último dia 23 e a polícia confirma que existem outras crianças que podem ter sido vítimas de agressões no mesmo local. Cláudia Gonçalves de Lima Gonzaga, titular da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami), no entanto, não precisou um número de famílias que registraram queixa. A investigação ainda é preliminar e um inquérito policial foi instaurado no dia 31 de março para investigar o caso.

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O Conselho Tutelar que responde pela região Sul da cidade confirma que recebeu a denúncia de Joice e de pelo menos outros três casos semelhantes que teriam ocorrido na mesma creche, que é particular e tem vagas conveniadas com a prefeitura. Inclusive, o conselheiro Cristóvão Petry identificou que, neste relato, foi constatada uma “situação de violência” e que todas as ocorrências que chegaram à instituição foram repassados para a Secretaria e Conselho Municipal de Educação, dos quais aguardam um posicionamento.

Por nota, o governo municipal confirmou ter recebido reclamações de apenas uma família, neste caso, a de Joice, e que fez, na sequência, visitas surpresas no CEI citado, mas que nenhuma irregularidade foi constatada. O município garante que a unidade está sendo monitorada por uma equipe da Educação.

Além de Joice, o A Notícia conversou com outras mães, que descreveram situações parecidas. Cristina* contou que encontrou uma das filhas “largada no chão” quando entrou de surpresa na sala da menina. Já Larissa* disse que a filha autista, de cinco anos, passou a ter crises de choro após frequentar o local por apenas três dias. Em uma das conversas, a menina contou que foi deixada sozinha no banheiro “por muito tempo”.

Joice ainda relatou que o filho chegou a ir com a chupeta de outra criança pra casa, além de roupas que não eram dele em mais de uma ocasião. Além deste indicativo, as mães passaram a desconfiar que algo estava errado quando os filhos ficaram mais agressivos e se negavam a ir ao CEI. Quando questionadas como estavam as aulas, as crianças desconversaram ou demonstravam medo de tocar no assunto. Em uma gravação, a mãe questiona a uma menina: “a profe já bateu em você?. Pode falar.”, e a criança responde: “Sim, mas não conta pra ela”.

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Pesadelos, crises de choro e fome

Joice diz que o filho começou a frequentar o CEI em setembro do ano passado e, inicialmente, gostava de ir à creche. Há três meses, no entanto, começou a falar que não queria ir e chorava toda vez que chegava próximo da escolinha.

A mãe, então, começou a perguntar sobre a rotina no ambiente. A criança dizia que não queria falar e, novamente, chorava a ponto de soluçar.

— Depois de eu insistir, ele falou que a “titia” beliscou ele no peito, batia na bunda e dava tapas na cabeça. Eu pedia pra ele mostrar como ela fazia e ele demonstrava “a profe me bate assim, na minha mãozinha” — relata.

A mudança no comportamento do menino ficou cada vez mais perceptível com o passar dos dias e começou a afetar até o sono do menino, que tinha pesadelos constantes.

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— Ele acordava muito durante a noite e falava “me solta, me larga. Gritava “não!”. Chamava por mim e pelo pai. Era um sufoco. Ele chegava do CEI morto da fome, como se não tivesse comido o dia todo. Misturava doce com salgado… Aí eu comecei a desconfiar — conta.

A mulher afirma que as professoras passaram a reclamar de um comportamento mais agressivo do menino e enviaram até bilhetes descrevendo as atitudes dele em sala, como morder e dar tapas nos coleguinhas.

O fato gerou surpresa na mãe, já que, segundo ela, as queixas não condiziam com a conduta do menino em casa. Mas tudo ficou esclarecido para a mulher quando ela recebeu um vídeo de Cristina, onde uma das filhas conta que o menino mordeu os coleguinhas e a professora o “corrigiu”.

— A menina foi pra casa com histórias de que a “profe” botava as crianças de castigo cheirando a parede, que batia. Foi quando a mãe dessa menina começou a fazer mais perguntas e ela relatou que presenciou até meu filho apanhando. Eu fiquei fora de mim — descreve.

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Com o relato da colega do filho, a mulher foi até o CEI para tirar satisfação com a diretora da instituição, que alegou que o menino estaria inventando as histórias.

No dia que Joice foi à polícia e procurou o Conselho Tutelar, foi encaminhada para uma psicóloga da assistência social do município, que, segundo ela, confrontou a versão dada pela responsável da creche.

— Meu filho falou com uma psicóloga, para ver se teria a possibilidade dele estar inventando coisa. Ela disse pra mim “mãezinha, não tem como uma criança de três anos se juntar com outras e inventar histórias”. A psicóloga também disse que não tem como ser invenção porque ele gesticula como aconteceram as agressões — argumenta.

Atualmente, o filho de Joice não frequenta mais o CEI do Floresta e aguarda transferência para outra unidade. 

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Maus-tratos e medo

Depois de suspeitar que o filho estava sendo agredido, Joice diz que foi à creche sondar se outros pais também estavam ouvindo reclamações em casa. Ela conta que nem sequer sabia a sala onde o filho ficava, já que não era permitida a entrada dos pais na unidade de educação.

Cristina sustenta a versão de Joice e fala que, antes da pandemia, conseguia entrar no CEI normalmente. As filhas estavam matriculadas na unidade do bairro Floresta desde 2019 e, segundo a mulher, até então, não havia notado mudanças no comportamento das meninas. No ano seguinte, porém, veio a pandemia da Covid-19 e, com a doença, novas regras foram implementadas, como distanciamento social e ensino híbrido.

Neste meio-tempo, por protocolo de segurança, os pais deixavam as crianças em frente à escolinha e não cruzavam os portões. Até aí, tudo normal. A questão é que mesmo com as aulas voltando para o presencial e o afrouxamento dos protocolos de segurança, as famílias ainda não podiam ter acesso às salas. A argumentação utilizada pela direção, segundo Cristina, é de que a instituição estava seguindo o Plano Municipal de Contingência para Educação (Placon).

Já desconfiada, no dia 18 de março a mulher foi assinar a chamada das filhas e, enquanto aguardava, por volta das 8h, ouviu várias crianças chorando e pediu para vê-las. Mais uma vez, recebeu uma negativa. Foi quando forçou a entrada e presenciou a filha “largada no chão”, como descreve.

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— No dia que eu invadi a escola, eu perguntava “o que vocês têm a esconder que não querem deixar a gente entrar?”. Era sempre a mesma resposta: “é o Placon, é protocolo, vocês têm que respeitar”. A discussão durou mais ou menos meia hora, até que eu empurrei a porta e invadi, foi aí que eu vi que a menina estava deitada no chão — conta Cristina, que registrou o momento em uma foto. Na imagem, uma mulher tenta impedir o registro. Segundo a mãe, se trata da dona da instituição.

Tanto Joice quanto Cristina reforçam que há mais crianças que foram vítimas de violência dentro do CEI, mas que as famílias não buscaram a polícia. No caso de Larissa, mãe da menina autista, ela não registrou um boletim de ocorrência porque imaginou ser “um caso isolado”, diz. Ela recebeu parte do dinheiro que pagou pela vaga particular em período integral e matriculou a criança em outro CEI, onde ela segue “feliz da vida”.

— Outra coisa é que ficaram com medo de perder a vaga, porque, segundo disse a Secretaria de Educação, não existe transferência de colégio conveniado para outra escola. Se a pessoa desistir, a criança volta pra fila. Aí muita família ficou com receio de fazer algo e acabar perdendo a vaga — justifica Cristina.

Número incerto de denúncias

O que ainda não está claro é o número de denúncias que foram registradas contra o CEI. Segundo a coordenação do Conselho Tutelar, foram utilizados três canais diferentes para oficializar as reclamações: o próprio Conselho Tutelar, a ouvidoria da prefeitura e a Polícia Civil.

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Petronilo Guilherme da Rocha Tomé, advogado criminal, diz que foi procurado para representar três famílias neste caso da creche, de pais que já registraram boletins de ocorrência. Ele explica que um processo está sendo elaborado contra a escola e uma professora, que segundo Tomé, já não atua mais na instituição. Há indícios de uma segunda profissional como autora de agressões e ameaças, diz.

A ação civil deve ser protocolada por danos morais e por lucro cessante, para reembolsar os pais que tiraram suas crianças do CEI e não puderam ir ao trabalho ou tiveram de contratar babás.

— Também que irei verificar ainda, ao longo do processo, se houve outros ilícitos, porque a gente pode ter situações de cárcere privado, que não precisa ser necessariamente um sequestro, mas deixar a criança em um quarto, de castigo, atrás da porta… humilhação. As crianças não mencionam que a professora não pediu pra não falar [das agressões], mas elas voltavam constantemente com medo [pra casa]. Então existe também a suspeita de que houve uma espécie de coação — explica o advogado.

Ele alega que trabalhará junto de uma psicóloga tanto na parte do inquérito quanto na abertura do processo, até que o caso seja enviado ao Ministério Público. Tomé aponta “distanciamento” tanto do município quanto do Conselho Tutelar no que diz respeito à supervisão do caso.

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Já a prefeitura argumenta que, no dia seguinte à denúncia de Joice, em 24 de maio, ocorreu uma reunião na Secretaria de Educação, onde estavam presentes servidores municipais do Setor de Convênios, da assessoria técnica do Conselho Municipal de Educação e a proprietária do CEI.

Às 10h30min do dia 26, representantes da Educação foram até a instituição e, todos os meses, segundo o município, são feitas visitas em todas as unidades conveniadas e filantrópicas para fiscalizar se estão sendo executadas as ações previstas no Projeto Político Pedagógico e no Regimento Interno da Unidade, apresentado e aprovado no processo de renovação da autorização de funcionamento.

A reportagem procurou a direção do CEI, que disse que não irá se posicionar no momento e que desconhece o teor dos relatos — mesmo com a prefeitura confirmando que houve uma reunião com a presença da proprietária da unidade.

Questionada sobre o que pode ser feito caso sejam comprovados os maus-tratos dentro da instituição, a Prefeitura de Joinville informou que a creche pode ser descredenciada e as crianças transferidas para outros espaços. Não é competência do governo municipal, portanto, fechar a unidade, mas o município pode buscar os órgãos responsáveis para também protocolar uma denúncia.

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O que fazer quando a criança relata agressão?

Andréa Betina Liebl Guedes, psicóloga da Secretaria da Educação, sustenta que um bom relacionamento entre pais e filhos é essencial para que casos de violência sejam percebidos.

E quando está sendo vítima de maus-tratos, segundo a especialista, as crianças demonstram sinais na fala, quando relatam essas situações e, principalmente, na alteração de conduta.

— Quando vai mais ‘tristinho’ pra casa, não se alimenta direito, demonstra medo do escuro, ou quando não está querendo ir para a creche — exemplifica.

Andréa reforça que uma criança não é capaz de inventar uma situação, mas fatores externos podem influenciar no relato dela, como cenas que assiste em filmes ou o próprio questionamento dos pais, que pode direcionar a criança a contar um fato que não tenha vivenciado.

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De qualquer forma, a orientação é não negligenciar e dar atenção à denúncia dos filhos, principalmente quando ocorre de forma espontânea. O primeiro passo, conforme explica Eliene Moro, técnica pedagógica do Núcleo de Educação Especial, Orientação e Saúde do município, é que os responsáveis busquem a creche ou escola onde o filho está matriculado para averiguar o caso e ouça os dois lados antes de tomar qualquer atitude.

— Diante da suspeita ou confirmação de agressões, o recomendado é que o caso seja levado para os órgãos de proteção à criança ou adolescente, ou seja, procurar o Conselho Tutelar ou registrar boletim de ocorrência na Dpcami. Se a família não fizer o BO, cabe à escola fazer o registro — destaca. 

*De acordo com o código de ética da NSC e com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a identidade das entrevistadas foi preservada para não expor as crianças. Os nomes utilizados são fictícios.

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