O ano é 2021, mas as circunstâncias em torno da pandemia que perdura por 17 meses relembram 1918, quando a gripe espanhola se espalhou rapidamente no mundo. A pandemia da época, que durou cerca de dois anos, matou 50 milhões de pessoas. Atualmente, mais de quatro milhões de pessoas perderam a vida por conta da Covid-19 no mundo.

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Ainda não é possível mensurar os efeitos da pandemia atual na sociedade, porém, uma coisa é certa: as relações sociais passarão por grandes mudanças. O que não se sabe ainda, é se isso será benéfico ou não. A cientista política e historiadora Heloísa Starling, diz que as escolhas que estão sendo feitas agora, em relação à Covid-19, vão impactar em como será a sociedade no futuro.

Ela é uma das autoras do livro “A bailarina da morte”, ao lado de Lilia Moritz Schwarcz. A publicação é um contundente retrato do Brasil durante a pandemia de gripe espanhola, investiga a doença que assombrou a humanidade e revela semelhanças com a Covid-19. A historiadora lembra que em 1918 as pessoas passaram pelo momento com mais cuidado uns com os outros, e, para ela, essa diferença é notória na comparação entre a gripe espanhola e a pandemia da Covid.

– Existe hoje uma parte da sociedade que é indiferente à doença e ao outro. O mais chocante na comparação desses dois momentos é que perdemos esse laço de sociedade em uma fatia larga da população. É como se a sociedade brasileira tivesse se degradado em 100 anos – diz a pesquisadora.

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O bem-estar da sociedade depende de uma ação coletiva em que cada pessoa é uma peça fundamental para a sobrevivência de todos.

– Não é compreensível que um setor tão expressivo da sociedade aja de forma violenta contra o outro. Na hora que escolho não usar máscara, estou disposta a correr o risco de infectar outras pessoas. Se perdeu a dimensão de que a vida de cada brasileiro vale a mesma coisa e isso é muito complicado quando pensamos em uma sociedade. Somos um, embora somos diferentes – explica Heloísa.

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Em uma sociedade desigual, o vírus é capaz de revelar os problemas enfrentados pelas diferentes classes, como aponta a historiadora.

– As mortes no Brasil em 1918 e agora têm cor e endereço. São os pretos, populações de periferia e populações indígenas. O vírus revela a desigualdade e quanto mais aguda ela é, mais vulnerável se tornam as pessoas que estão na base dessa desigualdade – sustenta Heloísa.

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Isolamento e resistência

O medo de enfrentar a situação pandêmica também aconteceu em 1918 e, na época, assim como em 2020, houve a tentativa de minimizar o contágio e a gravidade do vírus. A resistência, segundo o historiador Rodrigo Rosa, é uma reação natural da população quando há mudanças drásticas na sociedade.

Em 1918, a imprensa teve um papel fundamental na forma como as pessoas lidaram com o momento, conforme destaca Rosa:

– Os jornais da época tratavam o acontecimento com mais tranquilidade, alegando que no Brasil o clima amenizaria a doença e isso fez com que as pessoas não acreditassem, no primeiro momento, nos riscos que o vírus causaria.

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Embora a gripe espanhola tenha sido semelhante à Covid-19, a falta de conhecimento sobre 1918 gerou dificuldades para o país em como reagir diante de um novo vírus. A escassez de narrativas históricas, de acordo com o historiador, dificulta a tomada de ações diante de um acontecimento tão grande quanto uma pandemia.

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– A história sempre foi ditada em cima de grandes feitos econômicos, políticos e guerras. As experiências climáticas e doenças, que são algo muito importante para que a sociedade não sofra no futuro, chegam pouco no cidadão – pondera o historiador.

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A gripe espanhola afetou a vida da população na época, assim como afeta neste momento.

– Se a experiência que eles passaram naquele momento tivesse chegado até a gente, saberíamos como agir. Um exemplo é a forma como o vírus chegou no Brasil, pelos portos. Depois de 102 anos, a entrada mais rápida de uma nova doença aconteceria pelos aeroportos, então seria inteligente fechar as fronteiras o mais rápido possível – aponta Rosa.

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Heloísa Starling fala sobre a história esquecida e diz que essa falta de conhecimento faz com que a sociedade perca a oportunidade de aprender com ela.

– A gripe espanhola virou um índice de passagem, não um acontecimento. Ela foi esquecida na história e o que vivemos há 100 anos tem muito a ver com o que estamos vivendo agora – destaca a pesquisadora.

O sistema de saúde brasileiro

Se a população for capaz de narrar o que se vive atualmente, é possível que o mundo saiba lidar mais facilmente com uma nova pandemia. A história traz informações importantes sobre o passado e dá a oportunidade de aprender com as atitudes que já foram tomadas em outro momento, segundo os cientistas.

Tanto as guerras quanto às doenças interferem em todos os aspectos da sociedade. Uma pandemia é um acontecimento, não tão feliz, que modifica a vida individual, a inserção social e o equilíbrio coletivo.

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– Um vírus transmitido mundialmente muda os comportamentos da sociedade e determina o aparecimento de novas tradições, além de matar os mais fragilizados primeiro – diz o pesquisador.

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O sistema de saúde do Brasil entrou em colapso com o crescimento do número de casos de Covid-19 no decorrer de 2020 e 2021. O professor e cientista da área da saúde, Bruno Rodolfo Schlemper Júnior, explica que o alerta sobre pandemias já era feito há tempos e, de acordo com ele, o fato de o Brasil não trabalhar com a prevenção da saúde, torna mais difícil a forma como o país lida com a doença.

Segundo o cientista, na comparação com 1918, o vírus agiu de forma mais letal e infectou quase um quarto da população mundial. Em meados de agosto de 2020, após pouco menos de seis meses desde a chegada da Covid no Brasil, uma segunda onda surgiu com maior capacidade de contágio e letalidade. Durante a gripe espanhola, a maioria das mortes aconteceu em uma segunda onda, porém, na época, os hospitais eram locais apenas para a massa mais pobre da sociedade. De acordo com Schlemper Júnior, os médicos de família que atendiam os mais ricos.

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– As pessoas não tinham a imunidade que têm hoje, justamente porque não tinha toda a série de medicamentos que estimulasse isso. Sem falar da pobreza, da falta de higiene e saneamento básico. As pessoas morriam em 24h, em 48h, dentro de casa. Hoje temos uma estrutura bastante satisfatória, mesmo que ainda deficiente – diz ele.

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Em 1918, a infraestrutura da pesquisa científica era uma fração minúscula em comparação com a atual. Como ela se desenvolveu rapidamente, não deu tempo de os cientistas desenvolverem uma vacina, além de claro, a doença ser desconhecida por eles. Hoje, segundo Schlemper Júnior, a ciência está muito mais avançada e ter vacinas contra o vírus em menos de um ano é um sinal de vitória, que deve ser reconhecido.

Os hospitais no Brasil e, em Santa Catarina, chegaram a ter 100% de ocupação dos leitos de UTI no início de 2021, o que preocupou as instituições ao pensar que além da Covid-19, ainda existiam outras demandas de leitos.

– Percebemos a falta de UTI nos hospitais com a pandemia, mas essa falta de UTI não é só na pandemia. Na ausência dela, os hospitais também ficam lotados com outras demandas. Ainda é preciso fortalecer o nosso sistema de saúde, dar condições de trabalho às equipes para conseguirmos lidar com algo tão grande quanto uma pandemia – pondera o professor.

O que vai e o que fica da pandemia do coronavírus

Apesar de entender que haverá um mundo diferente do que existia, os especialistas afirmam que ainda não é possível dizer exatamente quais serão as mudanças do pós-pandemia. Os três defendem que é preciso olhar para os brasileiros como cidadãos de uma comunidade única. O processo de adaptação em relação a uma pandemia gera consequências graves na forma como a sociedade se constrói, sustentam os pesquisadores.

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– Quando a gente fala em um novo mundo, a gente pensa, em primeiro momento, que ele pode ser melhor. Porém, ele também pode ser pior. Não passamos dois anos suspensos no tempo esperando acabar a pandemia para voltar a março de 2020. O futuro próximo vai depender das nossas escolhas e isso pode ser bom ou, então, muito doloroso para o Brasil – aponta a cientista política Heloisa Starling.

A escolha em cumprir ou não as medidas preventivas contra o vírus impacta na maneira de como o país sairá da pandemia. A cientista explica que os resultados das ações de agora serão percebidos no pós-pandemia. No momento, ainda se vive de forma suspensa e sem respostas, segundo Heloísa.

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– Temos uma sociedade que estranhamente está degradada e isso provoca uma alteração muito radical. Se essa degradação se agravar vai desaparecer o que entendemos como comunidade e teremos um aglomerado de pessoas, onde suspenderemos os valores que já conquistamos até aqui. Para o futuro, porém, estamos escrevendo sobre o momento. Está tendo registros, então em uma possível nova pandemia, acho que saberemos lidar melhor. Se soubéssemos o que em 1918 as pessoas fizeram, saberíamos como lidar. Temos armas muito melhores agora, como o SUS, por exemplo – diz Heloísa.

O professor e cientista da área da saúde, Bruno Rodolfo Schlemper Júnior, destaca o fato de a ciência estar mais avançada hoje em dia:

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– Lidaremos melhor com uma nova pandemia, a ciência avançou muito. Conseguimos uma vacina em menos de um ano e os grandes feitos da ciência vêm de grandes crises, como a descoberta da penicilina, por exemplo, que foi desenvolvida no decorrer da Primeira Guerra Mundial – afirma.

Para o historiador Rodrigo Rosa, os comportamentos da sociedade atual demonstram que a escrita sobre o momento não será feita no ponto “humanístico das coisas”, o que dificultará o aprendizado futuro. Porém, para o pesquisador, alguns comportamentos devem permanecer no pós-pandemia, como o uso de máscara, que antes era sinônimo de fragilidade.

– As pessoas trabalhavam com sintomas de gripe correndo o risco de infectar os colegas e essa consciência do cuidado com os outros ainda falta no Brasil. “Eu estou doente e prejudico a minha comunidade, então me protegerei para proteger os outros” – aponta o historiador.

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A chegada de um momento crítico, em que se quebra a relação com o que era tido como normal, cotidiano e rotineiro, faz com que as pessoas tenham que repensar certas atitudes e olhem para o que antes não era tão visível.

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– O vírus não cria nada, mas revela tudo o que precisa de atenção. Por esse motivo, a desigualdade é a primeira coisa a ficar explícita em uma pandemia – diz Rosa.

Para Heloisa, com o fim da pandemia, a sociedade pode ter um avanço ou então regredir:

– Podemos perder de vez a referência do outro. Podemos virar ao invés de uma sociedade, um aglomerado de pessoas egoístas e ressentidas. Não temos nenhuma garantia de futuro. Podemos olhar para a degradação e enfrentá-la no sentido de resgatar os princípios da sociedade, como podemos afundar nisso e perder aos poucos a dimensão de sociedade – conclui.

*Sob supervisão de Everton Siemann.

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