Você conhece o Alex Pereira Barbosa? Certamente, não. O MV Bill, certamente sim. Esse carioca de 46 anos, nascido e criado na Cidade de Deus, é um caldeirão efervescente de talento: rapper, compositor, ator e escritor. Ativista, MV Bill foi um dos fundadores da Central Única das Favelas (Cufa) e sempre manteve relação com ações sociais em comunidades pobres de todo o país.
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Já esteve várias vezes em Santa Catarina. A primeira delas em 2000, em Florianópolis. E como ele mesmo gosta de ressaltar, as visitas sempre foram construídas dentro do contexto social: shows e idas à comunidades mais pobres.
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Isolado, MV Bill aproveita o tempo para fazer o que sabe de melhor: produzir. Música, livro e até mesmo uma série de ficção estão saindo do forno. Por telefone, ele concedeu entrevista para falar sobre os novos projetos e como vê a pandemia do coronavírus e os reflexos nas comunidades menos favorecidas.
Confira a seguir:
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Como tem sido a rotina, desde que a pandemia chegou ao Brasil?
Eu tô tentando não ficar pensando tanto no fato de estar preso dentro de casa, mas estou aproveitando a oportunidade de estar isolado para criar. Tô criando música, tô terminando de escrever mais um livro, esse será meu primeiro livro sozinho, todos os outros foram em parcerias com o Celso Athayde, e tô fazendo os videoclipes também, dentro dos protocolos de segurança e tentando utilizar o mínimo de gente possível. Mas tô achando importante manter minha criação ativa, é bom pra mim, bom para o meu cérebro, mas acaba sendo bom também para as pessoas que gostam do meu trabalho, e dentro de casa acaba virando mais uma forma de se entreter.
Você lançou dois novos videoclipes tendo a Covid-19 como tema principal. Como foram as produções?
As produções para essas duas músicas que eu lancei logo no início da pandemia foram totalmente caseiras. Não tinha planejado, até porque a gente não sabia o que vinha pela frente, mas assim que eu vi os acontecimentos, sei que tem gente que prefere se manifestar com discurso ou ir para a internet fazer uma postagem, eu gosto de me manifestar através de música. Se eu já não tiver uma música que já fale do assunto, que já me contemple, gosto de escrever uma na hora, que me traga uma forma de desabafo para a situação atual.
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Encontrei nessas duas músicas (“Isolamento” e “Quarentena”) a oportunidade de falar o que eu estava pensando e ao mesmo tempo dar um alerta para as pessoas sobre a inércia de parte das autoridades em relação ao surto, o desconhecimento e a ignorância do povo em relação à Covid e a gravidade que ela traz.
Clique e veja o clipe da música Isolamento
O que mais podemos esperar de trabalhos seus durante a pandemia?
Fiz uma live, a primeira que fiz, foi um sucesso, muitas pessoas gostaram, muitas pessoas assistiram, me surpreendi com o número de pessoas, mas procurei fazer uma live caseira, nada contra quem faz com muitas pessoas, muita gente, mas preferi fazer caseira, dentro dos protocolos de segurança, mas com uma qualidade mínima, dentro dessa limitação. O resulto foi muito bom e isso tá me inspirando para fazer uma segunda, talvez em outros moldes, mas também com segurança. Como tenho um repertório muito vasto, dá pra fazer uma outra live só com músicas que não toquei na primeira, dá para fazer outra só com músicas junto com a minha irmã Kmila CDD, tem bastante coisa ainda dentro do repertório.
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Você está preparando alguma novidade? O que pode falar?
Continuo escrevendo músicas novas, inéditas. Tô gravando alguns vídeos da forma que dá, mas em 2019 fiz clipes de algumas músicas que eu não cheguei a lançar agora em 2020. Aí, entrou a quarentena e agora estou com essas músicas e videoclipes que eu tô montando um cronograma pra fazer os lançamentos. Vou começar a alternar entre músicas que já estavam prontas de 2019 e algumas outras que tô fazendo agora nesse período de quarentena.
Você também fez trabalhos na TV e no cinema. Algum novo projeto?
Na TV, atualmente tô apresentando o programa chamado “Hip Hop Brazil”, no canal por assinatura Music Box Brazil, é um programa no qual só passo videoclipes do rap nacional, levo algumas pessoas para serem entrevistadas, como DJs, grafiteiros, B-boys, MCs, escritores, produtores musicais. Para o cinema, já que tá tudo parado, tô montando um roteiro de uma ficção, uma série, que ainda não sei para quem vou apresentar no futuro.

Há respeito ao isolamento social?
Em muitos lugares, percebo que não. Mas o isolamento é o único caminho, pelo menos até aqui, que não tem uma vacina para a cura, ou uma vacina para a prevenção. O isolamento tem sido a arma mais eficaz, tendo em vista outros países que tomaram essa atitude e já estão reabrindo alguns lugares. Reabrindo devagar, gradativamente, com algumas restrições que serão o novo normal daqui pra frente. Jamais seremos como antes.
Uma das principais formas de prevenção para evitar o contágio do novo coronavírus é lavar seguidamente as mãos com água e sabão. No entanto, muitas comunidades espalhadas pelo Brasil não oferecem serviço regular de água e esgoto. Na Cidade de Deus, onde você cresceu e se criou, como tem sido os trabalhos de prevenção?
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Em alguns lugares está difícil fazer a prevenção porque as pessoas não estão acreditando no potencial da doença. Somente quando morre alguma pessoa próxima, alguém da família que, infelizmente, algumas pessoas estão acreditando. Eu já estava bastante preocupado com a doença e há três semanas, quando perdi um grande amigo, que tocava comigo… Ele morreu e na semana seguinte morreu o irmão dele, que também contraiu a doença.
E aí, eu vi que estou no caminho certo, de continuar isolado, de continuar temendo a doença, seus efeitos, buscando uma forma de me proteger ao máximo. Mas muitas pessoas não têm como fazer o que eu tô fazendo, aqui mesmo na Cidade de Deus.
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A CDD é uma favela, mas dentro delas têm subfavelas. Tem um lugar chamado brejo, por exemplo, que tem uma parte lá sem água, sem saneamento básico. Então, a pessoa além de não ter direito o que se alimentar, ela não tem como se higienizar. É muito complicado, e isso é independente da Covid. É uma coisa que simplesmente não deveria existir. Vi uma matéria de um estrangeiro, que estava fazendo alguma coisa no Morro dos Tabajara, e ele não pôde continuar o trabalho dele, porque na área que ele estava não tinha água, para ele poder fazer o trabalho de prevenção e higienização das pessoas.
É uma situação que é inacreditável. Talvez algumas pessoas fiquem sem água por causa da falta de chuva, em algumas cidades tá rolando geada, mas tem várias cidades no Brasil que as pessoas vivem sem água, independente da falta de chuva, do nível dos reservatórios. Isso é uma parada vergonhosa.
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Você perdeu amigos na luta contra a Covid-19. Que reflexão que fica?
Sim, perdi muitas pessoas conhecidas, algumas aqui próximas, da Cidade de Deus, e outros de outros lugares. A perda já é um sentimento muito ruim, mas o enterro sem velório é um adicional à dor. Faz a gente refletir sobre o quão é grave essa doença, e desconhecida, e o quão perto de nós pode estar. E fora as outras pessoas, muitas conhecidas também, que estão contaminadas, mas que estão com sintomas leves e têm conseguido se tratar em casa. É uma notícia muito impactante, você saber de muitas pessoas morrendo, em alguns casos as pessoas vão perdendo até um pouco da sensibilidade, tamanha a quantidade de mortes e o quanto isso vai se tornando cotidiano. Infelizmente.
Como a Central Única das Favelas (Cufa) tem combatido as mazelas que acompanham a pandemia?
Não faço mais parte da Cufa, então não acompanho mais de perto. Hoje sou mais ligado à minha música, fazer meus clipes, meus vídeos, terminar meu livro, fazer a gestão da minha carreira. O pouco que tenho acompanhado, vi que tem um projeto, até fiz uma doação na minha live direto para o projeto “Mães da favela”. Achei que é um projeto interessante que a Cufa tá fazendo, que é de levar doações, tanto em alimento quanto em ajuda financeira, direto para as mães que são chefes de família.

Um dos principais impactos da pandemia, além da questão da saúde, é o social. Muitas pessoas perderam o emprego e viram a renda praticamente zerar de um dia para o outro. Você teme que isso possa aumentar ainda mais o desequilíbrio social que temos no Brasil?
Esse impacto a gente já tá sentindo nesse momento, que a economia já tá sofrendo. Muitas pessoas tentando ajudar outras pessoas porque já não têm mais de onde tirar. Muitas pessoas perderam o emprego, muitas fábricas fecharam, muitas firmas fecharam. O meu setor, que é o setor da música, do entretenimento, é o primeiro a parar e o último a voltar, porque faz aglomeração.
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Muitas pessoas do meio artístico, do meio musical, teatral, no cimenta, que não tão tendo como produzir. Tá todo mundo desempregado. Muitas pessoas não têm de onde tirar nada, não têm nenhum plano para receber nenhum tipo de ajuda. É uma situação que para muitas pessoas já começa a bater a beira do desesperador.
No mundo da informação instantânea que vivemos, há quem se aproveite disso para disseminar mentiras, ódio e desinformação. Qual recado você deixa para quem produz ou então compartilha “fake news”, em especial no momento de pandemia que atravessamos?
Acho de extrema irresponsabilidade e mau gosto utilizar as fake news num momento como esse. A fake news já é deselegante em qualquer âmbito, mas principalmente quando a gente tá no meio de uma pandemia, de uma crise sanitária, crise política, financeira, no meio disso tudo surgir fake news sobre esse assunto, principalmente sobre a Covid. Acho que é muito danoso. Vai desde quem posta, quem compartilha e quem ajuda a disseminar esse tipo de informação.
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Acho que é muito importante checar as informações antes de compartilhar, ou antes de postar. Não dá para confiar em qualquer cosia, sempre precisa de uma segunda opinião. Leia mais, busque outros veículos de comunicação, confirme se essa fonte é confiável. Tenho feito isso. Às vezes recebo informações e antes de passar para frente, mesmo que seja em um grupo de amigos, tento buscar todo o fundamento daquela notícia para não passar o errado. Porque dependendo do que for, as pessoas estão meio perdidas, meio sem rumo, sem direção, sem liderança, e uma informação sobre um assunto importante sendo passada de forma errada pode levar até as pessoas à morte.
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Você acredita que a gente vai vencer essa pandemia?
Acho que não vai ser fácil. Já está sendo bastante difícil. Uma coisa que pra mim é de filme, sabia que poderia acontecer algo parecido, mas não imaginava que fosse agora e nem com essa força toda. Mas acho que dá pra gente ultrapassar isso. Mas a gente tem que fazer as coisas certas. Sendo bem racional, olhando friamente, se a gente estivesse fazendo a coisa certa conseguiria ver melhor o horizonte ali na frente. Sendo realista, vendo como parte da população que tá encarando a pandemia, não só a população, mas também parte do meio político, esse horizonte fica cada vez mais distante e sombrio.
O que você acha que vai mudar nas pessoas, quando tudo isso passar?
Vai mudar muita coisa. Acho que a gente aprendeu bastante com a gripe H1N1, que deixou de herança pra gente o álcool em gel. Passou a fazer parte das nossas vidas. Acho que a Covid vai deixar além do álcool em gel reforçado, o hábito de lavar as mãos, as máscaras, a forma de socializar, de encontrar pessoas, amigos, de assistir shows, talvez de frequentar restaurantes. Acho que a gente vai ter muitas modificações e muitas adaptações. O que é certo é que não seremos mais os mesmos.
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