Escudo no peito, bola no pé e a luta contra preconceitos como esquema tático. Com a ideia de utilizar o esporte como instrumento de encontro, lazer e conscientização, os times Senegão e Milhões, ambos de Joinville, têm no futebol amador uma maneira para driblar as opressões do racismo e homofobia.

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Fundado em 2023 e formado na maioria por integrantes negros, o Senegão traz no nome a ideia de se relacionar com o território africano, inspirado na história da Sociedade Kênia Clube, local símbolo da negritude joinvilense. De acordo com o membro do clube e professor de História e Educação Física, Rhuan Carlos Fernandes, além de gols, o time serve para acolher pessoas que sentem o racismo na pele. 

— Desde o primeiro dia foi assim. Porque, às vezes, a luta parece que só acontece de um jeito: só sindicato, no movimento estudantil, em um movimento social. Então o futebol é um pretexto, a gente utiliza ele para estar junto — conta.  

A proposta de mobilizar e aproximar pessoas por meio do esporte mais popular do país tem dado certo. No Senegão, conta Rhuan, há integrantes que nunca foram de movimentos sociais. As questões políticas, mesmo que presentes, não são o único foco. A diversão e laços afetivos também são prioridades. 

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— Temos um fortalecimento familiar muito grande no clube. Saber que temos engenheiros, metalúrgicos, arquitetas e advogadas. Precisamos pensar qual é o lugar da festa e dar risada. O lugar do corpo que não é só luta, mas que curte jogar bola e se divertir. E aí a gente introduz algumas reflexões de mundo pelo diálogo, não de modo forçado — analisa. 

Aberto para pessoas brancas, construindo memórias afetivas e fazendo com que cada um do grupo se identifique com o outro, Rhuan aponta que a aproximação do Senegão com estrangeiros é uma das maiores conquistas do time. Atualmente, o grupo conta com cinco jogadores angolanos. 

— Essa relação é muito louca. Nossa perspectiva da ancestralidade é quase como um reencontro. Ainda mais sendo um país que fala português e, não só isso, mas a maioria das populações que vieram em situação escravizada para o Brasil é de Angola e do Congo. E é em Joinville, uma cidade que se anuncia como a cidade dos imigrantes, mas que ainda é tão segregacionista no Século 21 — pontua. 

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O professor conta que, mesmo sendo um time recém-formado, o Senegão vê o racismo estrutural sendo exposto durante as partidas, seja por decisões da arbitragem, ou por ideias construídas no imaginário das pessoas. 

— Em lance que fica a critério dos árbitros é evidente o tensionamento. As pessoas têm na memória coletiva que os caras pretos são os mais fortes, que podem receber mais porradas. Percebemos o exagero no cartão que foi para nós e não foi para outra equipe. Ou em um lance nítido de agressão na gente, que o árbitro viu e não rolou punição, porque na perspectiva dele nós estamos preparados para apanhar — reflete. 

Para o futuro, Rhuan explica que o Senegão quem construir equipes femininas, entrar em outras modalidades como o basquete e aumentar a participação em movimentos estudantis e sociais da cidade, em destaque o Movimento Negro Maria Laura. Além de seguir reunindo a população negra. 

— Nós e a galera entendemos o esporte como uma ferramenta de identificação, porque não é fácil viver em Joinville, é uma cidade muito conservadora e racista. Podem se aproximar mesmo se não for para jogar, pois tem muitos que só torcem — ressalta.

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Cores e coragem contra o medo

A ideia de Renan Eduardo Xavier, de 23 anos, para enfrentar a homofobia por meio do futebol começou em 2021. À época, ele foi convidado para uma partida na Copa Ilha da Magia, em Florianópolis, que reúne times LGBTQIA+. Quando voltou a Joinville, iniciou a fundação do Milhões, criado em 2022 e que, hoje, reúne integrantes, na maioria, homossexuais, bissexuais e transsexuais. 

Líder do time, ele explica que contou com apoio fundamental de um ex-vice-presidente para iniciar a estruturação do Milhões. Renan fala que no começo a equipe teve dificuldades em reunir pessoas dispostas a treinar e jogar com frequência. Entretanto, o grupo cresceu e, agora, conta até com uma técnica. 

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Para o jovem, o futebol é formado quase totalmente por heterossexuais, o que se torna uma dificuldade para times LGBTQIA+ participarem de campeonatos e atividades relacionadas ao esporte. 

— Exige coragem, porque muitas pessoas têm medo de quem pode vir ‘de fora’. Sempre há um receio, tem muito preconceito, inclusive em Joinville, que é uma cidade conservadora. Para marcar um amistoso, vou no Instagram do time e fico pesquisando se posso confirmar a partida — conta. 

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Renan lamenta que ele e o Milhões já sofreram homofobia durante os duelos. 

— Vamos jogar e ouvimos muitos comentários. Por exemplo, que não podem perder para nós, que é humilhação. Se julgam e julgam o nosso time por sermos homossexuais. Acho que enfrentar isso é uma quebra de barreira. A gente vai lá e entra em campo de cabeça erguida — pontua.

Com o foco em reunir atletas LGBTQIA+, o Milhões recebe também jogadores heterossexuais que lutam contra a homofobia. O time foi fundamental para Renan e outros integrantes assumirem a sexualidade sem medos.

— Antes eu não era assumido no meio do futebol. Eu até jogava em um time só de héteros e tinha medo das pessoas me julgarem. Depois de um tempo eu falei para o técnico, que me tratou bem, só que outras pessoas também souberam, incluindo times adversários, e começaram a me tratar diferente — expõe. 

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Apesar das situações negativas, ele celebra os avanços do Milhões e a importância que o grupo tem para os integrantes. Muitos deles, inclusive, tinham se afastado do futebol e outras modalidades após episódios de opressão. 

— O pessoal começou a entrar e vim com mais liberdade, sem medo. Acho que essa barreira foi quebrada. O Milhões abriu portas para as pessoas que tinham receio de voltar pro futebol. A pessoa tem que ser o que ela é — destaca. 

A expectativa de Renan nos próximos anos é fazer com que o Milhões siga quebrando preconceitos e realizar o sonho de entrar na Ligay, uma competição nacional que reúne times LGBTQIA+, aumentando a visibilidade da equipe de Joinville.

— Eu quero dar crescimento ao nosso time. Que as pessoas saibam que aqui tem um time de LGBTs e que nós somos pessoas normais e podemos jogar, sim — finaliza. 

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Em Joinville, as equipes do Senegão e Milhões integram, com outros oito times, a Liga Canhota Joinville, que reúne clubes de futebol amador da cidade com ideias alinhada à ideologia política de esquerda, progressistas e em defesa dos Direitos Humanos. 

Diretor de observatório contra o racismo vê avanços

O futebol como instrumento de luta contra opressões é endossado por Marcelo Carvalho, diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Para ele, a prática esportiva já é um método de inclusão social e para chegar em todas as camadas da sociedade. 

— Dificilmente um debate sobre racismo, homofobia e outras formas de preconceito e discriminação consegue atingir outros públicos que já não fazem parte. E quando a gente usa o futebol para trazer essas questões, atingimos uma parcela muito grande que não sentaria em um evento para debater esses temas — analisa. 

Marcelo Carvalho é diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol (Foto: Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Reprodução)

Marcelo avalia que o futebol aceitava preconceitos e, ao mesmo tempo, excluía negros e LGBTs. Mas o cenário mudou a partir de mobilizações que surgiram a partir de 2015, com coletivos de torcedores, de mulheres, de gênero, raça, entre outros.

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— Os temas começam a entrar no clube de fora para dentro. Isso é importante demais porque vai incluir e, olhando para o clube, mercadologicamente falando, ele vai ter mais um produto para poder vender e vai ter mais um público frequentando de forma segura os estádios de futebol —  comenta. 

Para ele, porém, é necessário que os clubes não pensem as pautas apenas uma vez por ano, em datas simbólicas, mas diariamente e oferecendo mais acessos aos esses coletivos.

Marcelo vê avanços significativos e acredita que a população vai discutir cada vez mais os temas de racismo e homofobia no futebol, seja profissional ou amador, o que facilitará quais caminhar tomar para combater as opressões no esporte. 

— Lá atrás o debate era, ‘será que os casos de racismo são frequentes ou esporádicos?’ Essa pergunta já tá respondida. A gente agora está preso na pergunta, ‘quem deve punir, o clube ou o torcedor individual, o CNPJ ou o CPF?’ — questiona. 

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Para ele, o próximo tema a ser discutido é a não-presença dessas pessoas nos espaços. O diretor do observatório avalia ser inviável avançar nas pautas enquanto as pessoas negras não fizerem parte dos espaços de gestão e de comando. 

— O meu olhar para o futuro está aí. Teve um tempo que as pessoas nem percebiam a ausência de treinadores negros e isso hoje já é nítido para todo mundo e já é discutido. Esses avanços me causam grande expectativa e grande esperança para o futuro — finaliza.

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