A última medida polêmica de Cristina Kirchner é o congelamento nos preços dos alimentos – recurso que fracassou no Brasil, nos anos 1980, por causar desabastecimento de certos produtos e adubar a inflação. Vinte dias depois do início do freio forçado à remarcação – iniciada no dia 4 por iniciativa do secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno -, surgem dificuldades pontuais. Na província de Chaco, o azeite sumiu das prateleiras. ZH verificou a situação em Buenos Aires. Num supermercado Coto, no bairro Once, a venda de azeite começou a ser limitada. Um cartaz expunha na gôndola: “Máximo duas unidades por compra”.
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Esperteza ofusca brilho da elegância
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Controle de preço, controle de tudo
“Arrogância de hoje é para cobrir a vergonha”
Cristina não quer largar o cetro
Galeria:As várias faces da crise na Argentina
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O casal Antonio e Margarita Aravena levou dois litros de azeite de cozinha, pagando 10 pesos (cerca de R$ 5) no total. Também comprou arroz, massa e outros víveres. Tudo o que procurou, achou e com opções de marca. No setor de erva-mate – indispensável na cesta argentina – havia até ofertas. O quilo da La Tranquera, por exemplo, havia baixado de 11,99 para 9,59 pesos.
– Não faltou nada. Compramos só o necessário – disse Antonio, 55 anos, segurança particular.
O governo se empenha para que o congelamento funcione. O todo-poderoso Moreno despachou fiscais pelo país, porque surgiram denúncias, na província de Mendoza, de que empresários estavam remarcando os preços. O aviso é de “tolerância zero” para quem burlar o pacto.
O congelamento tem duplo propósito: deter a inflação e assegurar vantagem para o governo nas eleições legislativas. Em outubro, devem ser renovados um terço dos senadores e 50% dos deputados. Na eleição, a maioria dos candidatos são de frentes ligadas ao Partido Justicialista, fundado por Juan Domingo Perón, depois que a queda de Fernando de la Rúa, em 2001, praticamente enterrou a outra grande sigla, a Unión Cívica Radical (UCR). Suspeita-se que Cristina Kirchner, caso consolide a maioria no Congresso, tentará mudar a Constituição para se candidatar à presidência pela terceira vez – o que seria o quinto mandato da família Kirchner, dinastia iniciada em 2003, com Néstor, marido da presidente, que morreu em outubro de 2010.
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Uma das características da era kirchnerista são os conflitos. Um dos alvos do governo é a imprensa, com o Grupo Clarín como mosca – centro do tiro certeiro. Oficialmente, o congelamento de preços nos alimentos tem por objetivo controlar a inflação. Uma das medidas paralelas à fixação dos valores foi a proibição de publicidade de supermercados e lojas de eletrodomésticos, sob o argumento de que, se os preços estão iguais, não há o que comunicar ao público. No entanto, analistas apontam outra intenção por trás da medida: asfixiar economicamente as empresas de comunicação independentes. Ao proibir a publicidade de supermercados e eletrodomésticos, tira cerca de 30% da receita dos jornais.
Presidente do grupo editorial Perfil, Jorge Fontevecchia, escreveu um artigo em que considera “óbvia a associação entre a proibição do governo aos supermercados e lojas de eletrodomésticos de fazer publicidade e seu desejo de ver definitivamente vencidos os diários não-oficialistas”.
O veto à publicidade já foi qualificado de boicote financeiro pela Associação de Entidades Periodísticas Argentinas (Adepa), pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e pelo Foro de Periodismo Argentino (Fopea). Em nota oficial, afirmaram: “Proibir anúncios privados ou amedrontar as empresas são variantes da censura”.
As entidades ressaltam que a proibição de publicidade é um duplo atentado. Primeiro, interfere no funcionamento dos meios de comunicação, restringindo arbitrariamente anúncios que permitem o autossustento. O segundo, igualmente grave, é que priva os leitores da informação. Consumidores leem jornais para conferir as melhores ofertas e organizar suas compras.
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Agência chamada governo
O kirchnerismo arraigou-se ao poder, permitindo que a presidente Cristina Kirchner manipule a cena política, graças a uma rede de apoios conquistada mediante favores e a agência de empregos chamada governo. O modelo não se impôs somente por ameaças e ocupação de espaços. Há um núcleo que garante em torno de 30% dos votos. Estimativas apontam que Cristina dispõe de um exército de 2,5 milhões de servidores – a maioria fichados no Partido Justicialista -, 5,7 milhões de aposentados do setor público, mais 4,5 milhões que gravitam em torno do governo. Somando-se a parte da população que aprova naturalmente o kirchnerismo, está formado o bloco de sustentação.
Paralelamente, existem grupos militantes como a La Cámpora, comandada por Máximo Kirchner, filho da presidente. Fundada em 2003, durante o governo de Néstor, a entidade homenageia Héctor José Cámpora, o efêmero presidente argentino que renunciou para assegurar a volta triunfal ao poder de Juan Domingo Perón, em 1973. La Cámpora arregimentou milhares de seguidores pelo país, todos defensores intransigentes de Cristina e Máximo. Cerca de 7 mil deles, em reconhecimento à dedicação, foram acomodados em cargos públicos. Se há manifestações antigoverno, eles intercedem como opositores.
Uma batalha pelas manchetes
O cerco à imprensa remonta a 2009, quando foi aprovada a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como a Ley de Medios (Lei da Mídia), criada pelo ex-presidente Néstor Kirchner. Desde então, é movida uma campanha sem tréguas, particularmente contra o Clarín, que sofreu invasões e apreensões de jornais.
Pela Lei da Mídia, cada grupo de comunicação pode ter, no máximo, 10 licenças de rádio e televisão aberta, mais 24 concessões de TV a cabo. Além disso, nenhum canal de TV pode superar 35% de abrangência no país. A regra deveria vigorar em 7 de dezembro, chamado o dia 7D, mas o Clarín conseguiu adiá-la interpondo recursos judiciais. Não há data prevista para o julgamento final.
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Detentor de 237 licenças de TV a cabo, o Grupo Clarín argumenta que a Lei de Mídia fere a liberdade de imprensa e a livre iniciativa. Cristina Kirchner rebate que não pode aceitar monopólios e precisa disciplinar as comunicações.
O estilo kirchnerista desperta ódio e fervor com igual intensidade. Há 37 anos morando no Brasil, o professor universitário Enrique Saravia recebe e-mails frequentes de amigos argentinos. São conterrâneos politizados que se dividem entre a defesa apaixonada e a crítica ferrenha ao governo. Nascido em Córdoba há 72 anos, Saravia está desiludido:
– Acho que o futuro será bem complicado. A deterioração econômica vai trazer consequências, como o desabastecimento, e a população vai reclamar.
Pesquisador da FGV Projetos, ligada à Fundação Getulio Vargas, Saravia não cogita de uma possível renúncia ou queda de Cristina Kirchner. Mas se preocupa com planos que já fracassaram em outros países, como congelamento de preços e restrições à compra de dólares. Aflige-se, especialmente, com decisões que mancham a imagem do país.
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– É uma ignorância muito grande. Não têm noção do impacto pelo mundo – lamentou o professor, que também atua na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
O maior exemplo do descontrole, para o professor Saravia, é o constrangimento provocado no Exterior em decorrência de dívidas e renegociações duvidosas. Lembra o episódio envolvendo a fragata Libertad – símbolo da Marinha -, que ficou retida 78 dias no porto de Tema, em Gana, por ordem do Tribunal Internacional do Mar. A embarcação foi apreendida como penhor de uma dívida de US$ 370 milhões.
O arresto da Liberdad, devolvida em janeiro deste ano, deixou o governo em apuros. Se viajar para outro país usando o avião presidencial, Cristina pode não ter como voltar, pois a aeronave também correria risco de apreensão judicial. Saravia recorda que a mandatária, numa das viagens, teve de fretar um voo particular por US$ 800 mil.
– Eles não se dão conta de que qualquer medida, no âmbito interno, tem imediato reflexo lá fora – ressaltou o professor.
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