A editora da UFSC lançou recentemente um livro peculiar e instigante, um dos melhores exemplos da audácia criativa das vanguardas europeias das primeiras décadas do século 20. Trata-se de Contos Mércio, de autoria do pintor, tipógrafo e poeta alemão Kurt Schwitters (1887-1948), uma espécie de compêndio de vários materiais que o autor recolheu ao longo dos anos.
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Pois por trás do livro está a arte Merz, que faz uso daquilo que sobra na sociedade – bilhetes do transporte público, pedaços de metal, madeira, vidro e plástico, cartazes, jornais e revistas. Com tradução da professora de alemão da UFSC, Maria Aparecida Barbosa, o livro de Schwitters é um exercício de montagem excêntrica de vários materiais heterogêneos, que se reúnem em poemas e contos que são tanto visuais quanto textuais. Schwitters faz uso da diagramação e da disposição física dos caracteres na página, o que termina por influenciar diretamente na experiência de apreensão do sentido do literário.
É preciso ter em mente, portanto, que Schwitters inaugura em seu livro não apenas uma linguagem, ou uma forma diferenciada de lidar com a linguagem, mas sobretudo uma sensibilidade. “Mércio” é o nome dado pelo autor a essa sensibilidade, a esse exercício de ver e sentir o mundo (seus materiais, suas relações, suas possibilidades) de maneira distanciada do padrão. Esse exercício deve levar a uma ultrapassagem das fronteiras entre o textual e o visual, e é precisamente essa mescla entre palavra e imagem que se observa em Contos Mércio.
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Como informa o posfácio da edição, grande parte da obra de Schwitters se articula ao redor de um manifesto, “O significado de Mércio no mundo”, no qual o autor traça um paralelo entre as práticas da literatura e as das artes visuais. Assim como o olho não escolhe aquilo que captura em sua viagem pela cidade, também a escritura não deve escolher – ou ao menos estabelecer regras rígidas com relação àquilo que deve ou não ser utilizado – quando é movimentada em direção a um trabalho poético. Daí o intenso uso de Schwitters das combinações de palavras e dos jogos de combinação sintática e semântica. A arte de Schwitters, em suma, que agora temos acesso privilegiado com Contos Mércio, nos mostra um mundo da criação, e não da representação; ou seja, mais do que se colar fielmente ao real, Schwitters usa os materiais banais desse real para testar um método revolucionário de leitura e fruição estética.