Poucos sabem, mas parte da produção literária do presidente da Academia Catarinense de Letras, Péricles Prade, encaixa-se na prateleira de literatura erótica. Para a estreia desta seção, Prade liberou o texto inédito, Cobra-rei, integrante do livro Espelhos Gêmeos, que o escritor lançará em 2013.
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Confira:
Ela sonhava, com frequência, que centenas de serpentes substituíam os seus fios de cabelo. Eram minúsculas, ativas e perigosas. Ao acordar, com nojo e horror, retirava-as da cabeça, uma por uma, antes de jogá-las numa lixeira enorme, encostada na parede esquerda, decorada com azulejos do século 16.
O sonho era diário e idêntico. Ocorreu, pela primeira vez, aos sete anos de idade, fruto de episódio cujos detalhes não mais se recorda, apesar do grande esforço para lembrá-lo. Guardou na memória, apenas, que estava na escola primária, quando sentiu contínua e intolerável ardência entre as pernas.
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Hoje, completou 30 anos. Procurou-me, dizendo-se estressada, a ponto de se matar, tamanha a tensão em que vive.
Fiz-lhe de imediato uma pergunta, deixando-a assustada:
Por que, após tanto tempo, resolveu consultar um médico justamente no dia do seu aniversário? Por quê?
– u u
A repetição da pergunta perturbou-a bastante, mas, sem qualquer reserva, falou de modo atrapalhado.
“Não sei se lhe disse que, sempre ao acordar, sou obrigada a retirar serpentes da cabeça. Na verdade, acordo duas vezes: uma, no sonho, e, outra, ao despertar do sono, consciente da situação passada. Hoje, tudo mudou. Percebi, após tomar o banho matinal, ao enxugar os pés, leve movimento sob a toalha, chamando-me a atenção o ritmo quase imperceptível. Com a própria toalha, tranquei entre os dedos algo que, com irritação crescente, não deixava de se mexer. Fui até a sala de jantar, nua e sem receios. Abri o pote de vidro de murano, aquele que me forçaram a comprar, após induzido passeio pelos canais venezianos, e nele coloquei a minúscula criatura. Era um cobra-rei. Cheguei a essa conclusão porque, na cabeça dele, havia uma coroa (o desenho muito bemfeito) prateada, dessas que a gente vê nas ilustrações dos livros de história, afiada nas pontas como agulha de boa cerzideira.”
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O cenho esquerdo movia-se com invulgar insistência. Talvez imaginando que eu não acreditasse nela, balbuciou:
– Acredita no que estou dizendo? Posso, agora mesmo, conduzi-lo até a minha casa.
-Tanto acredito que faço questão de dizer que não há mais razão para procurar outro psiquiatra, na cidade ou em outro lugar no planeta. A senhora está curada.
Não dei maiores explicações, dispensando-a do pagamento da consulta.
Tímida, considerando que o problema não era tão simples assim (como, “curada?”), saiu às pressas, demonstrando preocupação, tendo, perto da porta, me alertado para fechar o zíper da calça.
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Fui informado de que, naquele mesmo dia, procurou outros profissionais. Telefonou para uns cinco ou seis antes de se definir por Arcoverde Spina. Ele, talvez por ser mais simpático, cobrou-lhe caro para dizer que nada havia de anormal. Soube até que brincou, dizendo ser um privilégio para qualquer mulher ter um reizinho doméstico desses à mão.
Frustrada com essa consulta, voltou ao meu consultório.
– u u
O sonho, insistia nesse ponto, agora é outro. À noite, encantada, vê vaquinhas alemãs comendo cartões -postais, que, no alto de uma torre, balançam os rabos ao som de Nina Hagen.
O sonho se repetiu por sete vezes. Depois, a cada dia, novo sonho, evoluindo do preto e branco para o colorido. Ontem, por exemplo, sonhou que era Joana D’Arc. Sentiu até o cheiro da fumaça antes de, como a virgem de Lorena, morrer queimada.
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Sendo solteira e também porque as serpentes, nos sonhos recentes, não mais se alimentavam com os fios de seus cabelos, acabou adotando o cobra-rei.
Disse-lhe que a adoção foi uma decisão sensata. Saiu feliz e sobre a mesa deixou generosa recompensa.
Na carta, escrita e enviada em agosto, o orgulho é notável já nas primeiras frases. Afirmou, com segurança, que havia realizado um casamento perfeito.
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A explicação, quanto ao relacionamento, era mais detalhada nos últimos parágrafos da correspondência. O cobra-rei cresceu, atingiu perto de 30 centímetros. Não habita mais a redoma, vive à vontade sobre a cama. O alimento predileto ainda é o leite, bebido, antes de dormir, em seu seio direito.
Eu estava convencido, ao acabar de ler a carta de Isadora, que ela não havia dito tudo.
Por isso, hoje, não fiquei surpreso ao tomar conhecimento do envenenamento e da hemorragia interna.
O comissário de polícia não me pareceu um cavalheiro, verdade seja dita, ao rosnar, com aquele charuto malcheiroso na boca de dentes cariados, que o azar dela foi a dificuldade, ou melhor, a impossibilidade de retirar a coroa presa na vagina.
O que houve?
O cobra-rei, asfixiado, sem condições de retornar, após a cópula, por instinto mordeu o útero até se afogar com o sangue abundante, compartilhando, indefeso, a dúplice morte solitária.
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