No dia 29 de agosto a legislação que propôs mudar a cara das instituições federais de ensino completa 10 anos. A Lei 12.711 — mais conhecida como Lei de Cotas — garante que metade das vagas de institutos e universidades federais seja reservada para ex-alunos da rede pública.
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— Hoje me dói saber que eu, por enquanto, sou a única da minha família que está em uma universidade federal. Mas eu quero deixar um legado e ser inspiração para outras pessoas tanto da minha família quanto para colegas meus que achavam que isso não era uma realidade palpável para eles — afirma Raquel Ribeiro, estudante cotista do curso de Administração que ingressou na UFSC em 2016.
O texto da lei prevê que, até 29 de agosto de 2022, a política passe por uma revisão após 10 anos de execução. Ela não perderá a vigência, mas poderá sofrer alterações. Contudo, a possibilidade de mudança tem preocupado especialistas e movimentos sociais. A professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e dos cursos de graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rosana Heringer, afirma que atualmente vê um “cenário difícil” para uma avaliação sobre a lei:
— Temos uma compreensão de que não é necessária uma revisão da lei no sentido de que ela tem que ser modificada. É importante que esse balanço seja feito e que a avaliação seja feita, porém isso não significa que ela tem que ser modificada.
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Na UFSC, a lei de cotas, a partir de 2012, possibilitou o ingresso de 18.806 pessoas em vagas reservadas para estudantes de escolas públicas. Destas, 4.544 entraram em cursos de graduação por meio de vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas. E 194 pessoas declararam ser portadoras de deficiência. Segundo dados da própria UFSC, antes de a instituição ter política de ações afirmativas, o ingresso de pessoas autodeclaradas negras na instituição girava em torno de 400 pessoas por ano.
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— Ela [a lei] combinou diferentes projetos de lei sobre o tema que estavam em debate no Congresso Nacional naquele momento. Por exemplo, havia propostas que fossem apenas cotas raciais, havia propostas que fosse apenas cotas para escola pública e o que resultou no texto da lei foi uma combinação desses diferentes critérios — afirma a professora da Faculdade de Educação da UFRJ, Rosana Heringer.
— A legislação tem um papel importante porque de fato ela contribuiu para mudar a cara das universidades públicas. Um fato que permitiu, em relativamente pouco espaço de tempo, em 10 anos, a gente ter essa mudança importante no perfil dos estudantes. É importante dizer que essa lei ficou mais de 10 anos da Câmara dos Deputados. Não foi uma caminhada fácil, ela demorou até ser de fato considerada discutida e votada — completa.
“Foi uma conquista”

Raquel Ribeiro, 26 anos, moradora de Antônio Carlos, na Grande Florianópolis, ingressou no curso de Administração da UFSC no segundo semestre de 2016. Até então, ela seguia a projeção de vida que se apresentava no momento: trabalhar em alguma empresa da região, casar e ter filhos:
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— Tive um professor de Física que levou a gente no planetário da UFSC. Eu olhando para aquilo tudo pensei: “Meu deus será que eu vou ter um dia oportunidade de estar aqui?”. Até o meu ensino médio eu não tive esse incentivo familiar e nem dos professores [para cursar uma universidade]. Não era nem comentado sobre cotas no nosso ensino médio. Foi uma conquista, uma surpresa muito grande.
Foi só dois anos após terminar o ensino médio que ela resolveu seguir a dica de um amigo próximo de fazer a prova do vestibular e sinalizar, no momento da inscrição, que concorreria pelas vagas reservadas para alunos de escola pública que são negros.
— Meu amigo falou com tanta convicção que eu passaria que eu passei a acreditar [nisso]. Eu pedi os livros do cursinho pré-vestibular de uma amiga para estudar um pouquinho. Peguei dinheiro emprestado para me inscrever, fiz inscrição, fui fazer as provas e aí acabei passando — contou.
Sem acreditar que havia passado, ela se surpreendeu ao saber que o seu próprio nome estava na publicação que o Diário Catarinense fazia do listão com os nomes dos aprovados na UFSC. Na sala dela, dos 35 aprovados, apenas outras duas pessoas negras foram selecionadas para ingressar no segundo semestre de 2016.
— Nunca me esqueço, a nossa primeira professora perguntou quantos cotista havia na sala. Só nós três levantamos a mão. E ela assim: “Eu não quero que os outros se ofendam, mas geralmente os meus alunos cotistas são os mais esforçados”. Eu era a única pessoa casada, a outra colega trabalhava e o outro era o único que era pai. Ou seja, nós três tínhamos uma rotina mais corrida, enquanto os outros iam para trote ou bar — relatou.
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Perto do fim da graduação, Raquel lembra que a caminhada até completar esses seis anos não foi fácil. Para chegar à UFSC, morando em Antônio Carlos, ela acordava todos os dias às 5h15min para chegar às 8h20min. Deixar de trabalhar durante a graduação nunca foi uma possibilidade. Por isso, após as aulas ela retornava para o município para trabalhar. A situação só melhorou quando conseguiu um estágio dentro da instituição. Mas a jornada de estudos e trabalho só era finalizada por volta das 23h.
— Minha mãe faleceu em 2003 e sonho da vida dela era me ver ler, mas ela morreu antes. Foi por ela que eu não desisti — afirmou.
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UFSC adotou políticas de ações afirmativas antes da lei federal
Em Santa Catarina, a UFSC aprovou, em agosto de 2007, uma política de ações afirmativas próprias e tornou-se a 17ª universidade federal a assumir políticas de cotas, contemplando alunos que vinham de escolas públicas, negros e indígenas.
Até 2012, das 96 universidades estaduais e federais então existentes, 70 tinham algum programa de inclusão no processo seletivo. Coube à lei, além de ampliar o alcance das cotas, criar um padrão de funcionamento para elas. Desde a instituição da sua própria Política de Ações Afirmativas, em 2008, um total de 23.885 pessoas ingressaram na UFSC em vagas reservadas.
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O ortodontista, Gabriel Xavier da Silva, participou da primeira turma de cotistas dentro da instituição em 2008. A conquista foi muito comemorada pela família que morava em Camboriú, no Litoral Norte, mas trouxe preocupações e questões difíceis de lidar dentro de sala de aula.
— Eu realmente sentia essa diferença de ensino e de classe. E foi aí que eu tive o meu baque de cara: eu sou um menino preto, pobre. Eu não me encaixava no curso. A maior parte do curso eu estive de cabelo raspado porque até então cabelo grande ou era preso ou era sujo. O cabelo raspado era o que me protegia — desabafou.
O ator Leandro Batz, que também ingressou em 2008 no curso de Ciências Biológicas na UFSC e depois fez a transferência de curso para Artes Cênicas, também teve que enfrentar o racismo dentro da instituição.
“A gente andava e era apontado como cotista”
— Era aquela coisa do tipo… “Cotistas! Você é negro, é cotista!”. A gente andava e era apontado como cotista. E a pessoa branca de escola pública… Sabe? Não era! A marcação era minha cor de pele. Fora da universidade a minha marcação é a minha cor de pele, porque o segurança me persegue. Dentro universidade me perseguem porque eu entrei por cotas sabe como se fosse algo ruim — relembra Leandro.
Hoje, passados 14 anos, somando a política própria da UFSC e a lei de cotas, a presença dos cotistas dentro de instituições como a catarinense já está assimilada e aceita por boa parte da sociedade, afirma o reitor Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente.
— Nós tivemos em uma universidade que nunca teve negros, a presença de negros. Uma universidade que nunca tinha se debruçado sobre as desigualdades raciais, lidando com o racismo e a tolerância racial. A universidade precisou se debruçar a construir soluções nessa direção.
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Para especialistas, uma espécie de capacitação para toda a comunidade acadêmica também pode oferecer uma experiência mais tranquila a acolhedora para alunos que ingressem pelo sistema de cotas ainda hoje.
— Acreditamos que é necessária uma espécie de sensibilização para que toda a comunidade universitária receba esses alunos de uma forma mais integrada. Isso é muito importante para a trajetória que eles vão ter dentro da universidade — pontua Rosana Heringer, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e dos cursos de graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mesmo com os desafios, Gabriel e Leandro, enxergam a importância da trajetória dentro da universidade e as vitórias que o diploma vem trazendo.
— Quando eu peguei o diploma eu falei: “Isso aqui ninguém vai tirar mais de mim”. Vou levar essa marca para sempre, de que eu fui um dos primeiros dentistas pretos formados na UFSC. Hoje na ortodontia eu tenho mais contato com adolescentes, jovens e crianças. Eu sempre friso: se eu estou aqui hoje atendendo eles, é porque o sistema de cotas me beneficiou para entrar lá. Porque se não fosse [a cota], muito provável que não estaria ali — conclui Gabriel.
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Revisão da lei e desafios
A previsão de revisão da lei, após os 10 anos da sua vigência, refere-se à necessidade de analisar como a política pública funcionou para, então, discutir se deve ser ampliada, mantida como está ou “enxugada”. Contudo, mesmo que esse processo não aconteça em agosto, a Lei não perderá a validade.
Para o Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e Idealizador da campanha Cotas Sim, José Vicente, não há dúvidas da eficácia e resultados positivos que a política de cotas trouxe para a sociedade brasileira.
— A lei procura colocar no trilho o que foi essa distorção do espaço do superior público no nosso país em que tradicionalmente as universidades públicas sempre atenderam e sempre incluíram um conjunto de estudantes que além da homogeneidade estética também contemplam determinada a faixa de renda. E essas duas coisas juntas no final apresentaram como resultado uma universidade que estava totalmente divorciada com as necessidades da pluralidade.
A professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e dos cursos de graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rosana Heringer, coordenou o estudo “Avaliação das políticas de ação afirmativas no ensino superior no brasil: resultados e desafios futuros”, e afirma que além de ser mantida, a política deve ser ampliada.
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— A pesquisa que fizemos recentemente mostra que hoje em dia a gente tem 40% dos estudantes entrando por algum tipo de reserva de vagas nas universidades públicas. Então nem aquela meta de 50% se realizou. Então a gente precisa continuar buscando essa mudança de perfil dos estudantes. Além dessa criação do acesso, [é importante] garantir boas políticas de permanência para que esses estudantes que entram consigam concluir seus cursos com sucesso — explica.
Para Rosana, a lei pode e deve ser aperfeiçoada. Um dos pontos, segundo a pesquisadora é estabelecer que as cotas se tornem um piso no número de vagas da instituição e não um teto.
— Os estudantes que optam por ingressar pelas cotas quando eles marcam que eles desejam disputar uma vaga pelas cotas, mas [é importante] que eles não fiquem restritos as vagas destinadas para os cotistas. Que eles possam caso tenham nota suficiente, possam disputar na ampla concorrência. Isso levaria a um aumento de estudantes que teria um perfil das cotas, mas que podem ingressar sobre qualquer critério.
Outro ponto ainda poderia ser a redução da renda per capita dos estudantes oriundos da escola pública. A sugestão de Rosana é que a atual previsão de um 1,5 salário mínimo de renda por pessoa seja futuramente reduzido para meio salário mínimo per capita:
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— Para que a gente possa de fato atingir os grupos que são mais ausentes hoje no ensino superior — finaliza Rosana.