É da Vó Nair?

– É, sim – responde a voz clara, forte e potente que atende ao telefone.

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– Poderia falar com ela?

– Sim. O que deseja?

– Sou jornalista e gostaria de uma entrevista sobre o trabalho dela, o artesanato, a experiência de vida, enfim.

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– Que bom! Já dei entrevistas! Vem me visitar aqui na lojinha. Sabes onde é?

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Dez dias separam o primeiro contato, um pouco surpreendente pela lucidez e objetividade, e a visita na repleta loja de artesanatos Vó Nair, em Rancho Queimado, cidade da Grande Florianópolis. Pioneira na região, Nair Meurer Beretta, 96 anos, tornou-se conhecida pelo delicado trabalho que utiliza palha de milho para moldar bonecas, pássaros, santos, flores e o que a imaginação permitir.

O curioso é que o artesanato só entra na vida de Nair quando ela já estava com 70 anos, depois de um curso na prefeitura. Nascia uma relação apaixonada:

– O artesanato é o meu remédio. Há horas em que fico tão concentrada, o pensamento longe e tão em silêncio que eu mesma me pergunto: “Mas que silêncio é este, meu Deus?”.

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Atividades manuais sempre estiveram presentes na vida da dona de casa. Nair conta ter aprendido a fazer crochê e tricô com a avó, Berta Meurer, com quem foi criada desde a morte da mãe, aos 12 dias de vida. Na época, recorda, a morte de mulheres em decorrência do parto era bem comum. Os boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde comprovam: na década de 1920, o índice de morte materna chegava a 1.544 para cada 100 mil nascidos vivos.

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Dados atualizados de 2020 apontam 59 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos.

– Com três crianças em casa, papai viu-se obrigado a dividir a criação dos filhos. Meus avós tinham um pequeno comércio, e lembro que bem menina aprendi a gostar de ter meu dinheirinho: eu fazia crochê e botava no armazém para vender e fazia rifa – recorda.

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Era o prenúncio de que um dia poderia tirar das mãos um incremento de renda. Quando foi fazer o curso de artesanato de palha de milho, em 1998, Vó Nair se disse meio desconfiada. Achava difícil que pudesse ter um bom resultado com uma matéria-prima tão simples. Acabou surpreendendo-se. Gostou, produziu muitas peças e ouviu o conselho de uma neta de que poderia abrir uma loja. Foi o que fez.

– Eu já levei meu artesanato para muitos lugares. Houve uma época em que eu vendia no Largo da Alfândega, em Florianópolis. Nunca foi por dinheiro, mas pelo gosto, por estar com as pessoas, por fazer bem à saúde.

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Vó Nair reconhece que a loja a ajudou muito. Viúva e com os filhos casados e morando nas respectivas casas, ela encontrou na conversa com os clientes energia para criar peças. Tratou de acordar com os agricultores da região e faz girar a economia:

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– Uns ajudam os outros: os colonos jogavam a palha fora, mas desde então começaram a separar e vender pra mim – explica ela.

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Com a chegada da pandemia, em março de 2020, a rotina mudou. A necessidade do isolamento social levou ao fechamento da loja, o qual ela chegou a pensar ser definitivo:

– De vez em quando a gente atendia alguém, mas só pela janela. Foi um período muito difícil, de tristeza, de medo. Mas graças a Deus chegaram as vacinas. Eu não tive Covid e nem quero ter – diz a artesã, aos risos.

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Confira mais imagens da Vó Nair:

Vó Nair na lojinha que tem com os produtos feitos por ela
Vó Nair na lojinha que tem com os produtos feitos por ela – (Foto: Tiago Ghizoni)
Vó Nair abre o sorriso para falar do trabalho como artesã
Vó Nair abre o sorriso para falar do trabalho como artesã – (Foto: Tiago Ghizoni)
Detalhe da produção da Vó Nair
Detalhe da produção da Vó Nair – (Foto: Tiago Ghizoni)
Quadro com a árvore genealógica dos Beretta
Quadro com a árvore genealógica dos Beretta – (Foto: Tiago Ghizoni)

“Não é o mundo que mudou. As pessoas é que mudaram”

Vó Nair tem boa saúde. Prefere sentar na cadeira de rodas mais por conforto e segurança do que exatamente necessidade. Tem catarata para operar, mas que ainda não a impede de fazer as atividades. Ela acorda às 8h, arruma-se (conta com a ajuda de uma cuidadora), toma café com uma boa torrada e começa a trabalhar. Dá uma pausa ao meio-dia para o almoço, assiste o noticiário, dorme um sono e recomeça a sua arte.

– Gostamos de trabalhar até quase às 18h, quando encerro para assistir à missa na TV, fazer minhas orações, rezar o terço.

A artesã explica que prefere trabalhar na mesa da cozinha por causa do espaço. Mas também na lojinha, de onde se pode olhar para a rua e ver o movimento na pequena cidade com 2,6 mil habitantes. Não tem como negar: a casa é mesmo de vovó. Um jardim bem cuidado, paredes cheias de fotografias, desenho da árvore genealógica dos Beretta, mesas cobertas com toalhinhas de crochê e móveis enfeitados com guardanapos.

Em um dos espaços, uma fotografia do colega Mário Motta, a quem Vó Nair rasga elogios:

– Ele (Motta) foi o mestre de cerimônia de um evento na prefeitura. A TV não mostra, mas ele é baixinho, não é? Mas tem uma coisa que a televisão mostra e que a gente confirma quando chega perto: é um homem muito simpático.

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Os 96 anos de vida em que tantas mudanças ocorreram na nossa sociedade permitem Vó Nair fazer uma avaliação respeitosa da realidade:

– Não é o mundo que mudou. As pessoas é que mudaram. Antigamente as relações eram mais sadias, mais alegres. Lembro que a gente saía para dançar, tocar gaita e não dava brigas, desentendimentos.

Veja vídeo com a história da Vó Nair:

Ela enumera o que fazer para o mundo melhorar: diálogo, amor, compreensão.

– Devíamos nos entender mais, evitar ficar chateado uns com os outros. Às vezes, é uma palavra apenas. Está faltando Deus, fé e esperança na vida das pessoas. Tem gente que nem esperança tem mais – pontua ela.

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Sobre viver quase um século de vida, Vó Nair responde:

– Dá para dizer que eu sou feliz, mesmo tendo perdido pessoas da família (como um filho e o marido), eu me sinto feliz. Eu agradeço a Deus pela idade que tenho.

Antes da despedida, pergunto a Vó Nair como ela quer ser identificada nesta reportagem: Nair, dona Nair, aposentada, artesã?

– Me chamem de Vó Nair. Eu sou a minha própria marca.

Alguém vai duvidar?

O tempo, os fatos, as memórias

1925

Em 17 de outubro de 1925 nascia na hoje Rancho Queimado a menina Nair Meurer.

1926

Em 13 de maio de 1926, Santa Catarina ganhava o seu mais conhecido cartão postal, a Ponte Hercílio Luz, em Florianópolis.

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1932

A mulher brasileira conquista o direito de votar no ano de 1932. Órfã desde os 12 dias de vida, Nair é criada pela avó, Berta Meurer: mais tarde irá perceber que foi a avó a grande incentivadora para que aprendesse a fazer crochê e tricô.

1939

Eclode a Segunda Guerra Mundial, o maior conflito da história da humanidade e marcado por acontecimento como o Holocausto e as bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Por causa da participação do Brasil como aliado, o clima no país também foi de preocupação e tristeza.

1945

A guerra terminaria em 1945. Com 20 anos, Nair se casa em 8 de outubro com o homem que seria pai dos sete filhos (um falecido), o dentista Adalgizo Leontino Beretta. Como homenagem aos serviços prestados pelo técnico profissional, o marido é homenageado com o nome da Servidão Beretta. Na verdade, uma homenagem ao pai, um imigrante italiano que chegou com 10 anos em Santa Catarina.

1962

O lugar que servia de paragem para os tropeiros que atravessavam a serra catarinense, distante 60 quilômetros da Capital, é emancipado de São José em 8 de novembro de 1962, com o nome Rancho Queimado.

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1998

O 12 de julho de 1998 foi amargo para os brasileiros. A data marcou a derrota do Brasil para a França por 3 a 0 na decisão do Mundial. Aos 70 anos, Vó Nair decide fazer um curso de artesanato.

2001

Em 11 de setembro de 2001, o World Trade Center (WTC) sofre o atentado que marcou a história dos Estados Unidos. Com mais de 70 anos e depois de fazer um curso de artesanato com palha de milho promovido pela prefeitura, Vó Nair participa de feiras em Florianópolis e região.

2012

Nas comemorações do aniversário de Rancho Queimado, em 8 de novembro, Vó Nair conhece Mario Motta, apresentador do Jornal do Almoço, na NSC TV. Pediu foto e diz ser fã do também radialista da CBN Diário.

2020

A Organização Mundial da Saúde declara a pandemia do coronavírus. O isolamento social forçou Vó Nair encostar as portas da lojinha. Dois anos depois, com três doses de vacina e o uso da máscara, o atendimento ao público aos poucos é retomado.

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