Os argumentos quanto à importância da duplicação da BR-280 para a infraestrutura, a segurança do trânsito e a economia da região ganham ainda mais força quando os protagonistas deixam de ser os motoristas e passam a ser os moradores e trabalhadores das margens da rodovia.

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Para as pessoas que vivem em volta do asfalto, dormir e acordar ouvindo o barulho dos veículos e correr risco de morte a cada tentativa de passar para o outro lado são fatos, não argumentos.

Desde o anúncio da duplicação da rodovia, a reportagem de “AN” percorreu os quase 80 quilômetros para conhecer quem são as pessoas para as quais a conclusão da obra, prevista para três ou quatro anos, representará uma mudança permanente de vida.

A família que mora entre o rio e o asfalto; o borracheiro que criou dois filhos trocando pneus de caminhão 24 horas por dia; o vendedor de frutas que alimentou turmas inteiras de alunos do Colégio Agrícola de Araquari; e dois adolescentes que cresceram vendo acidentes graves num dos trechos mais perigosos da rodovia e que usaram a criatividade para conscientizar os motoristas.

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Estas são quatro histórias escolhidas para esta reportagem entre milhares que serão reescritas a partir da obra.

Relação de dependência

A rodovia faz parte da vida das pessoas de uma maneira tão intensa, que, para o especialista em mobilidade e formado em psicologia social Osvaldo Benvenutti, há uma relação de dependência. As famílias buscam moradias que fiquem próximas à rodovia porque é ali que tudo acontece. E quem passa pela estrada também precisa de serviços e produtos oferecidos logo ao alcance das mãos.

-As pessoas precisam da rodovia. O comércio em volta de casa sobrevive com o movimento da estrada. Até as crianças usam as referências do asfalto, a linguagem, nas suas brincadeiras-, diz.

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Segundo ele, os conflitos _ especialmente os acidentes de trânsito _ podem ser amenizados com campanhas de conscientização para os moradores e equipamentos de segurança na rodovia, como radares e passarelas.

Aumento rápido

Duplicar uma rodovia como a BR-280 é como abrir uma represa de desenvolvimento pressionada há décadas. Na avaliação da Federação das Empresas de Transporte e Logística do Estado (Fetrancesc), logo nos primeiros meses, quem mora ou trabalha perto da rodovia vai serntir como se a manada estivesse estourando.

-Uma rodovia duplicada tem um aumento de 25% no movimento de transporte. E isso é uma média. Pode ser ainda maior. Por isso, todos devem estar preparados para um o desenvolvimento muito rápido de tudo o que envolve a rodovia a partir da duplicação-, diz o presidente da entidade, Pedro José de Oliveira Lopes.

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Asfalto colado no muro da família Oliveira

De todos os moradores que vivem às margens da BR-280 entre Jaraguá do Sul e São Francisco do Sul, talvez ninguém tenha tanta proximidade quanto a família Oliveira.

Eles moram em um vão entre o asfalto e o rio Itapocu. O acostamento da rodovia é colado no muro das casas e, nos fundos, o quintal dá direto nas águas barrentas do rio. A região fica na área perto do Posto da Polícia Rodoviária Federal e lá vivem pelo menos dez famílias.

-Já faz uns 15 anos que a gente mora aqui. No começo, não dormia direito por causa do barulho. Mas pior é o medo de um caminhão se perder e invadir as casas. É muito perigoso para as crianças-, diz Diva Aparecida de Oliveira.

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No ano passado, para minimizar o risco, a família instalou uma grade para impedir que as crianças saiam da garagem. Para se ter uma ideia da proximidade, o acostamento serve de estacionamento para os moradores, que tomam todo o cuidado de colocar os carros o máximo perto das casas para evitar um choque com os veículos que passam pela BR-280.

Embora não haja uma definição quanto à saída das pessoas, todos estão preparados para deixar o lugar.

Se for bom para todos, é bom para seu Burigo

Célio Burigo é um morador de Araquari que não entra nas estatísticas ou nas contagens do IBGE. Todas as noites, de segunda a sábado, ele estaciona seu caminhão num dos postos de combustíveis da cidade. E por ali ele dorme. Seu endereço, no entando, só pode ser descrito durante o dia. Faça chuva ou sol, ele está sempre no quilômetro 27 da BR-280.

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Seu Burigo é o vendedor de frutas que fica em frente ao Instituto Federal Catarinense (IFC), que ele ainda chama carinhosamente de Colégio Agrícola de Araquari. Turmas inteiras chegaram, estudaram e foram embora, sempre comprando laranjas, bergamotas, melancias e abacaxis com ele.

-Essa duplicação não vai ser fácil. Para mim, fica um pouco mais ruim, mas a duplicação é importante para todos-, diz, lembrando que, com a duplicação, os motoristas não vão poder parar do outro lado da pista para comprar.

Hoje, segundo ele, o mais importante é que os fregueses _ moradores, estudantes e motoristas _ já o conhecem.

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-Pelo exemplo da BR-101, espero que não seja tão complicado. Lá, tem mais movimento ainda. E os fregueses já estão acostumados a comprar nos mesmos lugares-, compara.

Conscientização com bom humor

Os meninos Vinícius de Oliveira, de 14 anos, e Lucas Becker, de 11, são primos e cresceram ouvindo o barulho dos caminhões passando pela BR-280. Eles moram num dos trechos mais perigosos, palco de sucessivos atropelamentos e protestos de moradores, no bairro do Porto Grande, em Araquari.

No fim do ano passado, eles compraram uma fantasia de morte _ a veste longa preta, a máscara e a foice _ participar de uma festa na escola. Nos dias entre o Natal e o Ano-novo, quando milhares de carros pararam várias vezes o fluxo do trânsito na BR, a brincadeira de assustar as irmãs e primas mais novas, como quase todas as brincadeiras de quem mora em volta da BR, foi naturalmente levada para o acostamento.

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A metáfora da morte rondando as estradas e buscando os motoristas descuidados passou a ser a atração do congestionamento. Durante horas, os dois se revezaram para “assustar” os motoristas e dizer, sem nenhuma palavra, “tomem cuidado”.

-Eu já vi alguns acidentes. Os motoristas passam muito rápido aqui. Conhecidos nossos já morreram atropelados. Por isso a gente ficou brincando com os motoristas. Nem todos entenderam, mas a maioria levou numa boa-, diz Vinícius.

Como é perigoso ficar perto da rodovia, os dois tomaram o cuidado de ficar ao lado de uma proteção de concreto, perto da ponte que fica em frente à casa deles. Em poucos minutos, eles ouviram muitas buzinas, alguns gritos e perceberam o principal: pela curiosidade ou pela figura silenciosa à frente, quase todos os motoristas reduziam a velocidade.

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Dois filhos criados com o trabalho na beira da estrada

O borracheiro Gilberto Voginski perdeu a conta de quantos anos viveu na beira da estrada, trocando pneus, dia e noite. E não pneus de automóveis, mas de caminhão, trator, guindastes, máquinas pesadas.

Hoje, depois de criar os dois filhos, ambos com mais de 30 anos, ele não pensa em parar, mas considera que a BR-280 deixou de ser o seu ganha-pão.

– O que mudou foi o tipo de caminhão que passa por aqui. Antigamente, eram os contêineres que paravam aqui na reta, em São Francisco do Sul. Hoje, a maioria é graneleiro, que só para nos postos e dentro do porto. Nem dá para manobrar aqui-, diz o borracheiro.

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Ele espera que, com a duplicação, aumente o volume e a diversidade de cargas no Porto de São Francisco do Sul. E que os caminhões voltem a parar por ali.

-Hoje, se aqui dá R$ 300 por dia, no mesmo dia dá mais de R$ 2 mil para borracheiros que ficam nos portos que não são públicos, como o de Itapoá e o de Navegantes. Vamos ver se melhora com a duplicação-, diz, com muito bom humor e esperançoso.

A única angústia é perceber que não há mais jovens aprendendo o trabalho. Como grandes empresas trazem máquinas que fazem parte do trabalho, Gilberto já percebeu que não há mais jovens interessados em aprender a trabalhar manualmente.

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-Além da duplicação, é outra coisa que vai mudar logo logo-, diz.