Theo enxerga o mundo com a mão.
– Gosto de brincar com meu baldinho e pazinhas.
Theo toca o universo com o pé.
– Sinto a areia fininha no meio dos meus dedos.
Theo sabe o gosto do mar:
Continua depois da publicidade
– É salgado. Sabes como descobri? Eu estava na onda e sem querer tomei um pouco d’água.
Também descreve a maresia, brisa que sopra no litoral para aliviar o calor do verão.
– Tem cheiro de mar, cheiro de coisa salgada.
> Receba as principais notícias de Santa Catarina pelo Whatsapp
Aos seis anos, Theo Pereira Martins Kuhnen desenvolve as habilidades como uma criança cega em decorrência de glaucoma congênito. A doença é causada pelo aumento da pressão intraocular durante a vida intrauterina levando à atrofia de ambos os nervos óticos. O menino enxerga o mundo ao redor pelo toque, cheiro, gosto, audição.
– Tenho percepção à luz. Agora tem sol, então é dia.
> Entenda o que é o glaucoma congênito
A presença do astro-rei também ajuda Theo a lidar com a temperatura:
– Sinto calor, mas também frio. É assim: quando entro dentro d’água sinto frio. Mas se ficar muito frio saio e esquenta um pouco.
Como Theo imagina o mar?
– Fico escutando o barulho das ondas, pensando como serão os peixes, o fundo do mar. Consigo imaginar o mar com os meus ouvidos também.
> Vacinômetro tem 90 cidades de SC sem registro de crianças imunizadas
Quando a nutricionista Martina Manoella Pereira Martins Kuhnen, mãe de Theo, foi procurada para a entrevista ela perguntou ao filho se ele aceitava e explicou sobre a intenção desta reportagem. Theo gostou da ideia e não esqueceu de falar nisso enquanto o entrevistávamos na praia:
Continua depois da publicidade
Aceitei participar desta reportagem por achar que com meu exemplo posso ajudar os outros.
Theo Pereira Martins Kuhnen, seis anos
Como assim, Theo?
– Minha mãe disse que existem pessoas que enxergam e que ficam em casa. Acho assim: se estiver ocupado ou cansado de trabalhar, tudo bem, está certo. Mas se está com “preguicite” e só deitado na cama, a pessoa deve levantar e aproveitar mais.
Estímulo para absorver informação
A vida de uma criança com deficiência visual é bastante desafiadora, pois ao não reconhecer o ambiente ao redor ela pode cair, bater nas paredes, tropeçar em móveis ou objetos. Theo tinha seis meses quando começou a frequentar a Associação Catarinense para Integração do Cego (Acic), em Florianópolis. Para a família, visitar a instituição desde cedo foi fundamental para o desenvolvimento. Com o atendimento de estimulação multissensorial, ele desenvolveu percepções táteis, gustativas, auditivas e olfativas que o ajudam a ter mais autonomia.
Para Martina Manoella, o fato de o filho caminhar com desenvoltura e de acordo com a idade é resultado do trabalho de orientação e mobilidade que desde bebê recebe na Acic. Assim também como o esforço da família em tornar experiências simples do cotidiano algo produtivo que, apesar de ele não ter a experiência sensorial das cores, o ajuda através da linguagem formar conceitos.
Continua depois da publicidade
– Sempre falei para o Theo tudo que iria fazer com ele: filho, a mãe vai trocar sua fralda; filho, a mãe vai vestir você com uma bermuda azul, filho, você vai tomar suco de laranja. É um direito que ele tem sobre o que ocorre no entorno – conta Martina.
> Desmatamento cresce mais de 50% na Amazônia em três anos
A descrição feita pela mãe dos objetos, situações e experiências ajudam Theo a formar uma percepção do mundo com muitos pormenores. Estimulada, a criança tende a absorver toda a informação que lhe permite imaginar e compreender o ambiente em que está. Talvez por isso tenha surpreendido a mãe com uma declaração:
– Theo me disse que não gosta muito de usar óculos, que prefere ver o céu, que é da cor preferida dele, o azul – afirmou a mãe.
Theo terminou 2021 com boas notícias: ele atingiu um nível de compreensão adequado e chegou a hora de ser alfabetizado. Como é cego, deve der feito em Braille. No final do ano passado, com a ajuda da mãe, Theo gravou um vídeo no próprio Instagram pedindo ajuda para uma vaquinha. Não demorou para ter que gravar outro vídeo, mas para agradecimento aos seguidores: o dinheiro para a compra da máquina de escrever em Braille estava garantido.
Continua depois da publicidade
> Florianópolis vai voltar a ter radares fixos após sete anos; veja onde
Theo passou uns dias curtindo os avós, na Praia de Ibiraquera, em Imbituba, no Sul do Estado, e com o pai, separado da mãe, a quem reencontra a cada 15 dias. Águas mais calmas, como da Lagoa do Peri e da Praia da Daniela, no Norte da Ilha, em Florianópolis, são as mais frequentadas pela família. No começo, conta a mãe, ele tinha uma certa resistência em entrar no mar. O vento no rosto, o barulho das ondas e textura da areia nos pés pareciam incomodar.
Mas as coisas mudaram e agora Theo se diverte nas ondas e brincando com o baldinho. Theo disse para a mãe que gosta de viajar. Com o passar dos anos, talvez ele faça a mesma descoberta de muitos turistas: o melhor não é exatamente a viagem, mas os cheiros, os sabores, os sons que se ouve.
> Verão: recupere sua pele dos danos causados pelo sol
Na pequena viagem entre o Centro de Florianópolis e a praia de Canavieiras, no Norte da Ilha, Theo experimentou o quanto a água no corpo tem efeito relaxante. Mal entrou no carro, sentou na cadeirinha e dormiu até em casa.
Projeto praia acessível em 23 cidades
Com 560 quilômetros de extensão, o litoral de SC possui centenas de praias. Algumas são desertas e de difícil acesso – seja por trilhas ou barcos –, outras badaladas e espaço de lazer para moradores e visitantes. Neste verão, o Projeto Praia Acessível, iniciativa do governo do Estado e que atende a pessoas com diferentes graus de deficiência física e mental, está presente em 68 praias de 23 cidades. A lista dos locais está disponível no app CBMSC Cidadão. O foco são pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida.
Continua depois da publicidade
> Projeto permite banho de mar para pessoas com deficiência física em SC
Para esta temporada, a Santur destinou um investimento recorde em acessibilidade para banhistas. Executado desde 2013 por iniciativa do Corpo de Bombeiros Militar (CBMSC), o projeto Praia Acessível agora dispõe de 150 cadeiras de rodas anfíbias e 19 mil estrados, distribuídos nos balneários catarinenses. O investimento foi de R$ 750 mil, o mais alto até agora no programa.
> App lançado pelo Corpo de Bombeiros de SC ajuda surdos a acionar socorro
No quesito inclusão de pessoas cegas ainda há muito a nadar. Em países da Europa, como na França, há praia com boias e sensores de áudio dentro d’água. Utilizando no pulso um aparelho parecido com um relógio, a pessoa pode ter a informação exata da distância da boia. O sistema funciona por um rádio sem fio.
> Pode beber infectado com Covid-19?
Com ele, o nadador não perde a noção da localização, e tem autonomia para nadar e sempre que precisar pode ouvir a mensagem em áudio para saber a localização em relação à boia, à praia e sobre a profundidade do lugar. Há, ainda, um botão de emergência a ser acionado em caso de algum problema. Socorristas permanecem à disposição.
Confira fotos sobre o dia de Theo na praia
Bastidores: “Pelos olhos de Theo”
Entrevistar uma pessoa cega é diferente do que uma pessoa que enxerga o entrevistador. Aprendi isso em 2016, quando produzi “O amor é cego”, uma reportagem especial que mostrava como jovens sem visão se apaixonam. Com Theo, mesmo sendo ele uma criança e tendo sempre a mãe, a avó e o padrinho por perto, procurei aplicar as lições daquela época: a primeira coisa que fiz foi me apresentar a ele. Mas não só dizer o nome, o que faço, a empresa em que trabalho.
Continua depois da publicidade
Descrevi onde estava sentada (à frente dele), a roupa que usava, a cor do chapéu e da mochila que carregava. Também falei sobre a presença do meu colega, o repórter fotográfico Tiago Ghizoni, e deixei que eles conversassem. Conforme combinado com Martina, a mãe do Theo, chegamos cedinho no apartamento deles, no Centro da cidade: 7h de uma quinta-feira ensolarada e quente em Florianópolis.
Tivemos a oportunidade de ver como a família se organiza para ir à praia: protetor solar no corpo, roupas leves, preparo do lanche, escolha dos brinquedos. Theo estava animado, contou o quanto gosta de carro e de música, comandou a assistente virtual Alexa e quis saber para que serviam e tocar nos equipamentos da nossa equipe: microfone lapela, máquina fotográfica, tripé.

Durante o reconhecimento tátil ele aproveitou para tirar algumas fotografias. Escolhi uma dessas para ilustrar meu relato sobre os bastidores desta reportagem. Aqui estou eu pelos olhos do Theo (acima).
Leia também:
> “Flagrante” de trabalhador em rede social causa demissão por justa causa; entenda
Continua depois da publicidade
> Mulher atacada dentro de casa em SC enviou pedido de ajuda
> Jovem sofre abuso sexual após ser drogada em Jurerê Internacional, diz polícia