“Às 5h20min, debaixo de vivo entusiasmo popular, o primeiro comboio entrou na estação. Em Joinville, pois, pela primeira vez ecoou o silvo estridente da locomotiva, como um mensageiro de felicidade que traz aos seus habitantes um porvir risonho na senda do progresso”.
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As palavras de Carlos Ficker, na obra História de Joinville remontam a célebre data de 29 de julho de 1906, há 112 anos. Mais do que avistar no seu horizonte o primeiro trem vindo na linha férrea que ligava São Francisco do Sul a Joinville, o fato notável representa a importância dos trilhos no desenvolvimento da cidade ao longo do século 20. Conquista histórica, hoje preservada por alguns apaixonados que ajudam manter a memória ferroviária do país.
Inaugurada em 8 de agosto daquele ano, hoje a centenária Estação Ferroviária da cidade, tombada como patrimônio arquitetônico brasileiro há 10 anos, não é a única do acervo de lembranças dos tempos áureos dos trens e das litorinas, na região. São nas casas de um pequeno grupo de colecionadores e modelistas que o município guarda a riqueza de detalhes: as peças de um dos hobbies mais antigos do mundo, o ferreomodelismo.
Arte feita à mão com dedicação
É no porão de uma residência que fica no bairro Anita Garibaldi, que Armando Reimer, 78 anos, mantém histórias vindas de décadas e quase uma centena de itens em miniatura feitos à mão. Um a um esculpidos em cerca de 150 horas de trabalho e, cada um deles com cerca de mil minipeças inseridas. Uma paixão que leva com ele desde a infância, que não tem preço e que transforma pedaços de lata em arte e preservação da história.
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– Fui piloto de avião nos anos de 1960 e digo que conheci o Brasil pelos ares, mas me apaixonei pelos trilhos, sendo passageiro. Na década de 40 ainda se viajava de trem pelo Brasil todo, então, por exemplo, nasci em Porto União e lá tinha um trem diário que fazia sua rota até Joinville e São Francisco do Sul. Além disso, a máquina à vapor funcionando é uma coisa impressionante, de uma imponência tremenda, que naturalmente me captou ainda menino – recorda ele, com o mesmo fascínio com que iniciou no ferreomodelismo ainda na juventude.
Hobby este que ganha vida em uma maquete elétrica e rodeia toda a extensão do seu canto preferido da casa, há pelo menos 30 anos. No local marcam presença as réplicas de estações ferroviárias, de vagões, locomotivas e litorinas guiadas por linhas férreas. Apenas duas delas, vindas da Alemanha, não foram fabricadas por ele.
As demais obras foram feitas com o auxílio de fotografias e das plantas das peças originais, algumas delas famosas, como a locomotiva da Central do Brasil Zezé Leone, nome em honra à primeira Miss Brasil, eleita em 1922. A ela, se soma ainda um modelo alemão da Segunda Guerra Mundial e outro inglês, que chegou a atingir 200 quilômetros por hora em 1939 – máquinas essas, que formam um registro histórico ainda com destino incerto no futuro.
— O mundo evoluiu e vai continuar assim, a história sempre se repete, então as coisas estão diferentes e vão mudar novamente. Meus filhos e netos não brincam disso hoje e gostam mesmo é do computador. Depois que eu partir não sei o que vai ser disso tudo, talvez vai para a caçamba — brinca aos risos, Armando.
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Herança que passa de pai para filho
Diferente dele, outro joinvilense colecionador de réplicas de vagões e locomotivas já dá como certo o caminho das relíquias que guarda em redomas de vidro dentro de casa, no bairro Glória. “Eles poderiam vender, mas tenho certeza que não vão se desfazer dessas peças. Vai ficar de herança e meus filhos vão dividir o acervo”, aposta Nivaldo Klein, 67.
Ele é apaixonado por ferreomodelismo desde a infância e aos 30 teve condições de realizar seu sonho de menino, comprando seu primeiro “brinquedo” do gênero. Hoje já tem mais de 500 produtos guardados, incluindo peças raras e feitas sob encomenda.
— Meus filhos cresceram em meio a esse hobby maluco e consegui desde cedo transmitir essa admiração e responsabilidade do modelismo para eles. Tanto que são plastimodelistas (construção de miniaturas fabricadas em plástico) e já ganharam prêmios nacionais. Isso não tem preço — avalia Nivaldo, sobre a relação paterna que o ferreomodelismo ajudou a construir junto dos filhos Francisco e Paulo, os dois na faixa dos 30 anos de idade.
É em Nivaldo, inclusive, que a prática ganha um aliado para novos adeptos. Ele já conseguiu expor uma maquete férrea eletrônica nos anos 2000 para mais de 40 mil pessoas na cidade e ajudou a criar a Associação de Modelismo de Joinville ainda na década de 1990. A entidade reúne cerca de 20 modelistas de diversos deles, cerca de seis dedicados aos trens, que se reúnem semanalmente para trocar informações.
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— É nesse contato, acompanhados de petiscos e bebidas, que nos reunimos para trocar ideias, dar risadas, contar histórias e trazer novos entusiastas. Aqui em Joinville têm três que ajudei no estágio inicial para começarem no ferreomodelismo — explica.
Produção em escala
Investir na interação dos pais com os filhos e ajudar na descoberta de uma diversão familiar saudosista ao passado – relembrando uma época em que as novas tecnologias ainda não ocupavam espaço determinante no dia a dia dos brasileiros – é a proposta presente há 51 anos na única fabricante de trens elétricos em miniaturas e réplicas de composições reais da América Latina, a brasileira Frateschi.
A empresa, com sede em Ribeirão Preto (SP), é remanescente na área e fornece os materiais utilizados pelos ferreomodelistas catarinenses (quando não trocados entre si), que, segundo o diretor-executivo Lucas Frateschi, estão começando a descobrir aos poucos esse campo, já consolidado em outras regiões do País. Anualmente a produção chega a ser de cerca de oito mil vagões, sem contar os acessórios que compõem as estruturas – comercializadas em ao menos uma dezena de estados brasileiros e nove países.
Um dos primeiros a verificar esse nicho de mercado foi o próprio avô de Lucas, que vendia brinquedos em geral e encontrou nas pequenas peças um caminho para empreender. Paixão que atravessou gerações e se alinha aos atuais objetivos da atividade.
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— Estamos há 50 anos neste mercado e temos convicção de que ajudamos a fortalecer as relações humanas, como a interação entre pai e filho, avô e neto e amigos, que vivenciam momentos descontraídos durante a prática deste hobby. É uma alternativa de interação para a família e de desenvolvimento de atividades manuais e criatividade, além de trazer a própria história ferroviária para dentro de casa — explica.
Ainda segundo o empresário, 95% do público de ferreomodelistas é do sexo masculino, na faixa dos 35 anos aos 78 anos. Eles são homens normalmente estabelecidos em âmbito pessoal e profissional, que buscam neste hobby uma alternativa de entretenimento e, por consequência, transferem o passatempo para os mais jovens.
— Temos acertado na estratégia de atingir primeiro o pai para chegar nos filhos. Porque quando criança ele vai ver o pai brincando com essas réplicas em casa e vai guardar essa imagem na memória dele. E é essa integração que pode representar a continuidade da atividade no futuro — conclui.