Há 20 invernos ininterruptos, Manoel Paulino de Matos Filho, de 63 anos, o Maneca, acorda às 4h30min todos os dias entre 1º de maio e 31 de julho. Ele faz seu café, o coloca em uma garrafa térmica, e junto de um potinho com seu almoço, parte para o serviço. Maneca e outros dois colegas, Jair Manoel da Silveira, 62, o Bem-te-vi, e Francisco da Silveira, 63, o Virina, chegam à praia antes dos demais. Ainda na madrugada, eles precisam subir e descer por rochas, colocar o pé na lama em dias de chuva, e seguir por uma trilha que os leva até o Costão da Andorinha, na praia da Pinheira, em Palhoça. Ali, 5h30min em ponto, eles iniciam sua jornada de 12 horas diárias — por vezes mais — como vigias da pesca de arrasto da tainha.

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Os três, nascidos e criados na Pinheira, possuem papel fundamental para a pesca artesanal da comunidade. No costão, seja em cima de pedras ou em pontos estratégicos, eles não tiram os olhos do mar. Do ponto mais alto da Praia de Cima, eles conseguem enxergar os cardumes de tainha que ameaçam e que entram na baía. E são eles que avisam os pescadores, que esperam no racho de pesca à beira da praia, pelo sinal que indica que há possibilidade de um lanço.

Mas é preciso experiência para enxergar as prateadas. Quem não está acostumado pode até procurar os sinais, mas não encontra.

— Elas geralmente chegam pulando. Aí é mais fácil ver. Essa é a principal diferença da tainha em relação a outros cardumes. A água também fica agitada na região onde está o cardume, junto de uma mancha avermelhada — conta Maneca.

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Na tarde da última quarta-feira, um cardume se aproximou da Pinheira. Para os vigias avisarem os pescadores, os peixes deveriam entrar na área da baía. As tainhas ameaçaram, mas acabaram voltando para o mar aberto e seguiram para o Norte. Possivelmente, serão encontradas hoje por pescadores de Florianópolis, na ilha, avaliaram os vigias. Enquanto eles viam o cardume indo embora, a reportagem da Hora sequer percebeu sinal dos peixes, mesmo forçando a visão. É coisa pra quem entende.

Os vigias, só com o primeiro olhar, já conseguem identificar se o cardume é grande ou pequeno. Entre 3 mil e 4 mil tainhas, segundo eles, é considerado um lanço médio. Mais do que é isso, é grande. Em 2008, lembra Maneca, um lanço de 28 mil tainhas fez a felicidade dos pescadores da Pinheira. Um dia inesquecível, quando ele ainda não era vigia, mas atuava como pescador, não sai de sua memória: 29 de maio de 1977, quando ocorreu um lanço de 52 mil prateadas na praia onde cresceu e aprendeu sua profissão.

— E o dia 29 está chegando, junto do frio — diz um confiante Maneca, com um sorriso no rosto e esfregando as mãos de ansiedade. Ele espera que o feito se repita.

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Vários cardumes já apareceram na região da Pinheira desde o início da safra. Do dia 1º de maio até esta quinta-feira, a comunidade pesqueira realizou três lanços, o maior com 1.480 tainhas — número considerado bom para início de safra. A partir deste domingo, com a previsão da chegada de frio mais intenso e de vento Sul — imprescindível para a pesca da tainha — a expectativa é de que as prateadas cheguem com tudo à Pinheira, espera o vigia Virina.

Maneca atua na função há 20 anos
Maneca atua na função há 20 anos (Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

Felicidade e frustração

Era indiscutível o olhar de frustração dos vigias quando o cardume de tainhas voltou ao mar aberto nesta semana em vez de entrar na baía. Mas isto é comum, explicaram. Se o vento Sul continua forte, os peixes seguem ao Norte e não entram nas praias. Ainda na semana passada, a expectativa era da vinda de um cardume de mais de 10 mil tainhas, visto por vigias do Farol de Santa Marta, em Laguna, no Sul do Estado. Mas elas não apareceram em Palhoça.

— A gente se comunica com pescadores do Sul e já fica de olho quando eles veem algo por lá. Leva uns dois dias para chegar aqui, dependendo da intensidade do vento Sul — explicou Bem-te-vi.

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E quando um cardume vistoso ameaça entrada na baía, a felicidade os consome. Cada um dos três vigias segue para uma ponta do costão, para acompanhar todo o caminho das tainhas. Se o cardume está em uma posição possível de se lançar a rede, chegou o momento de avisar os pescadores e as canoas entrarem em ação.

Hoje em dia, o sinal dos vigias é dado através de um radiocomunicador ou pelo celular. Coisa que, segundo Maneca, facilitou a vida dos pescadores. Antigamente, eles usavam uma bandeira branca para avisar que a fartura havia chegado à praia. Mas se estava escuro, era difícil orientar as canoas. Com as ligações, tudo ficou mais fácil e eles, vigias e pescadores, se falam em tempo real. Mas a bandeira branca continua sendo levada pelos vigias, como forma de garantia. Vai que baixa uma zica e nem o radinho e o celular funcionam.

Antiga bandeira ainda é usada por precaução
Antiga bandeira ainda é usada por precaução (Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

Assim que o aviso é dado, os pescadores começam a correria na areia. Colocam as madeirinhas para levar a canoa até a água, trocam de roupa (segundo Maneca, não é aconselhável entrar com a roupa toda na água. Depois passa frio com a roupa molhada e se “encaranga” todo, com risco de hipotermia). Para um lanço de aproximadamente 3 mil tainhas, três canoas são suficientes, explicou Virina.

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Os vigias continuam monitorando a ação das canoas. De cima do costão, eles avisam o sentido que a embarcação deve ir: esquerda ou direita.

— Se o cardume está no lado direito da baía, a gente avisa para a canoa entrar pelo lado esquerdo. Ela precisa fazer toda a volta para jogar a rede — disse Maneca.

A primeira canoa que entra na água, relatam os vigias, precisa de pescadores experientes. O patrão do barco vai orientando os quatro remadores, até o chumbareiro — que joga o chumbo da rede na água — encontrar o ponto ideal para soltar a malha.

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Caso o cardume se espalhar ou voltar a mar aberto antes de a rede ser arrastada, também é trabalho dos vigias monitorarem e darem a má notícia.

— Quando isso acontece, é um dia muito ruim. É o dia que a gente sai daqui com mau-humor, frustrado — revelou Maneca.

Se a maré for de sorte, e as prateadas içadas, é dia de festa na Pinheira.

— É tainhada no almoço e janta, na casa de todo mundo — brinca o vigia.

Pescadores aguaram o sinal no rancho
Pescadores aguaram o sinal no rancho (Foto: Felipe Carneiro / Agencia RBS)

Fim da função

Tanto Maneca quanto Virina e Bem-te-vi (que são irmãos, inclusive), deixam explícito que são satisfeitos com a função que desempenham. Mas ao mesmo tempo, não indicariam a profissão para os filhos sobreviverem.

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Ao menos na Pinheira, Maneca acredita que ele e os dois colegas sejam a última geração de vigias da pesca de arrastão de tainha. São 12 horas diárias de dedicação, por três meses seguidos: faça chuva ou faça sol. E o valor arrecadado, dependendo da safra, pode não ser satisfatório ou dar garantia para o sustento de uma família. No ano passado, por exemplo, lembrou Maneca, Santa Catarina teve uma das melhores safras de tainha dos últimos anos. Mas a Pinheira só teve a oportunidade de fazer um lanço.

— Se o pescador tiver dinheiro, tem que mandar o filho estudar, fazer faculdade. Hoje em dia tem pouco incentivo para ser pescador. Está cada vez mais difícil — lamenta Maneca.

Veja o vídeo com uma entrevista especial com seo Maneca:

Conheça o trabalho do vigia da pesca de arrastão da tainha

A safra da tainha começa em 1º de maio e termina em 31 de julho. Até o dia 15 de maio, só os pescadores com canoas a remo e redes de arrasto de praia têm permissão para a pesca. Depois disso, os barcos motorizados, para até 10 toneladas de carga, podem atuar. A partir de 1º de junho, são permitidas as embarcações industriais. Com as canoas motorizadas, comenta Maneca, a pesca de arrasto não é prejudicada. Mas as traineiras, que pescam em alto-mar, já ajudam a impossibilitar a chegada das tainhas à costa.

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