O drama das enchentes que voltou a ser vivenciado pelos catarinenses, em especial os moradores do Vale do Itajaí, neste mês de outubro também desperta a população para a importância da solidariedade. Para quem vive a apreensão de ter que deixar a casa e partir com os parentes para um lugar protegido do avanço das águas, como abrigos municipais, amparos como transportar os móveis, preparar uma refeição ou até mesmo uma carona para cruzar uma área alagada rumo a um hospital ganham outra dimensão e se tornam marcantes para quem é beneficiado.
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Quando as primeiras famílias da região central de Blumenau precisam sair de casa por conta da previsão de avanço do Rio Itajaí-Açu, o aposentado Raul Gonçalves, 70 anos, deixa a própria residência, livre do risco de alagamentos, para ajudar quem precisa. É assim há 40 anos, desde as grandes cheias de 1983 e 1984 em Blumenau.
Foi novamente assim nas últimas semanas. As chuvas de outubro já fizeram 133 cidades de Santa Catarina decretarem situação de emergência e ao menos duas, Rio do Sul e Taió, declararem calamidade pública. Nos dois municípios do Alto Vale do Itajaí, as águas seguiram baixando esta semana, mas a vida dos moradores ainda não voltou ao normal. Em Blumenau, mesmo com o Rio Itajaí-Açu abaixo dos 6 metros nesta semana, 51 pessoas ainda permaneciam em dois abrigos que seguiam ativados até o fechamento da edição. As cheias já provocaram seis mortes em SC, além de estragos em casas, ruas e rodovias catarinenses.
Ex-funcionário da Cia Hering, Raul atendeu a um pedido de um ex-vereador que tentava reunir pessoas para cuidarem de abrigos em diferentes regiões da cidade durante as cheias da década de 1980. Atualmente, ele é o coordenador de um dos 59 abrigos mapeados pelo município para ativação em caso de cheias.
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O espaço, no salão de uma igreja luterana no bairro da Velha, chegou a abrigar 15 famílias nas cheias deste mês. Nesta semana, sete ainda permaneciam no espaço, pelo temor de que a previsão de mais chuvas pudesse alagar novamente as residências em que moravam. A principal tarefa é receber as famílias, encaminhá-las para os cadastros da área de assistência social e manter os espaços organizados. Nos primeiros anos, ele lembra que havia uma corrida para conseguir alimentos para os abrigados. Chegava a trazer da própria casa para dividir com os moradores. Nos últimos anos, as refeições passaram a ser enviadas pela Defesa Civil, o que deixa tudo mais organizado e também exige menos voluntários atuando na cozinha.
— A gente nunca pegou enchente, não sabe como é, mas vê a tristeza das pessoas. Alguns pegaram um pouco de água, foram lá, depois tiveram que voltar. Mas a maioria desta vez não foi atingida, ainda bem — conta.
Raul lembra que o pior episódio já enfrentado foi a tragédia de 2008, que teve 136 mortos em toda a região e levou dezenas de famílias ao abrigo em que ele atuava. Em todas essas situações de cheias, ele conta que o sentimento que o motiva é a solidariedade.
— É para ajudar o próximo, quem precisa. Estamos dando uma força. Tudo que a gente puder fazer por eles, nós fazemos — diz Raul, que tem o apoio da mulher nos serviços no abrigo.
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Veja fotos de Rio do Sul, cidade que sofreu com enchente
Apoio às famílias em Taió
A 150 quilômetros de Blumenau, subindo o curso do Rio Itajaí, gestos de companheirismo são vistos também nas ruas de Taió, no Alto Vale do Itajaí, a mais atingida pelas enchentes. A cidade teve a maior cheia da história, com o rio chegando a 12,40 metros de altura, 3,5 mil moradores atingidos e 2,5 mil imóveis, equivalente a 34% das edificações do município.
A psicóloga Kamilla Golim, 30 anos, mora há um ano em Taió e enfrentou a primeira enchente. Servidora da área de Assistência Social do município, ela ficou mais de uma semana sem voltar para casa, que ficou alagada com mais de 2 metros de água. Os gatos do casal ficaram em uma sala de reuniões, aos cuidados de um amigo.
Kamilla e o marido, funcionário do Conselho Tutelar, passaram os dias em um abrigo do município, transferido para a cidade vizinha de Pouso Redondo durante as cheias em função do avanço das águas. No espaço, auxiliaram em quase tudo. Coordenaram as ações, ajudaram a receber famílias, buscar doações, brincar com as crianças. Psicóloga, contribuiu até mesmo para dar amparo emocional nos momentos mais difíceis às famílias, angustiadas com as perdas e os dias de preocupação.
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– Não tem outro lugar que eu gostaria de estar. Apesar de todo o transtorno, na minha casa a gente conseguiu tirar todos os móveis, então não teve nenhuma perda. As pessoas que estão nos abrigos precisam de cuidado, de alguém com olhar atento que se importe com garantir o mínimo de conforto e bem-estar – afirma.
Kamilla lembra que nos primeiros dias chegou a embarcar em uma canoa dos bombeiros pulando da sacada da casa de uma amiga para conseguir ir até o abrigo. No fim de semana de pico das chuvas, entre os dias 7 e 8, conta que ninguém dormiu, preocupado com o nível que o rio poderia chegar. A psicóloga diz que as cheias abalaram o emocional dos moradores:
– As pessoas que ficaram mais “mexidas” são as que nunca tinham sido atingidas, as que mudaram de casa depois de 2011 para não pegar enchente, e pegaram. Ou as que subiram os móveis para o segundo piso, e perderam tudo porque a água chegou ao segundo andar.
Atenção aos animais durante as cheias
Uma atividade que também exigiu esforços de equipes foi o cuidado com os animais durante as enchentes. A maioria dos abrigos ativados pelos municípios já contou com espaço para abrigar cães e gatos das famílias que precisavam sair de casa. Foi num desses espaços que atuou André Mantoanelli, chefe de Bem-Estar Animal de Rio do Sul.
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Ele conta que quando surgiu o alerta de enchente o setor e uma ONG animal da cidade coletaram doações de rações, que foram destinadas aos abrigos após a chegada das famílias. Além disso, uma equipe de Belo Horizonte ajudou a resgatar animais de rua ou que tinham sido abandonados pelas famílias.
As jornadas das equipes nessas duas semanas chegavam a 15 horas diárias, parando apenas para dormir. No total, a estimativa é de que o grupo tenha resgatado cerca de 200 animais durante as cheias. Agora, o trabalho entrou em uma terceira fase, que é tentar encontrar adoção defi nitiva para esses animais esquecidos na enchente.
– Agora que a cidade vai ficando limpa, a adrenalina baixa, olha para trás e vê que ajudamos os animais neste momento é gratificante – afirma Mantoanelli.
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