Esta reportagem se inicia pedindo licença ao leitor para usar um clichê dos mais surrados: a vida do chileno Claudio Pérez poderia, sim, dar um belo filme.

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Mais: daria um filme com excelente fotografia, feita pelo próprio protagonista.

A sinopse da trama, ambientada em São Leopoldo, Caxias do Sul e Santiago do Chile, relataria o caso de um homem que trocou a palavra pela fotografia, mas que jamais abandonou a poesia em suas mais diversas formas de expressão.

Pérez tinha 15 anos quando acompanhava o pai em reuniões políticas naquele 1973 do golpe de Augusto Pinochet que submeteu o Chile a 17 anos de trevas. O número de pessoas que participavam dos colóquios? Não lembra. Recorda só que duas delas desapareceram naquele 11 de setembro em que o presidente socialista Salvador Allende cumpriu a promessa de não sair do Palacio La Moneda com vida. Matou-se lá mesmo, em meio à artilharia dos militares.

O pai de Pérez se afastou da política. Ele, não. Tomado de energia juvenil, insuflado pelo idealismo paterno e dos colegas de discussões políticas, tornou-se poeta. Aquele caudal ideológico o formou. Passou a integrar um grupo de poesia que saía às ruas fazendo recitais.

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– Tínhamos o grupo Oficina Santiago de Poesia. Fazíamos poesia política na Universidade do Chile, na Faculdade de Artes, e fomos expulsos.

Era final de 1978. A ditadura ceifava vidas. Pérez sofria. Afastado da poesia, passou a dar aulas de tênis para crianças em Rancagua, distante 80 quilômetros de Santiago.

Certa vez, viu no jornal um chamamento para os chilenos optarem: ou Pinochet, ou a ONU, que cobrava o ditador pela sua violência. À noite, saiu para jantar com amigos e lhes mostrou o jornal. Comentaram-no, escandalizados. Só não perceberam que, numa mesa próxima, estavam agentes da polícia secreta. Foram presos, levados a um local nas cercanias da cidade.

– Podíamos, ali, ter passado a integrar a lista de desaparecidos. Mas um amigo meu havia sido policial. Passamos a noite presos, bateram em nós, mas nos libertaram – conta.

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E Claudio se libertou da ditadura, em 1979.

– Eu e outros quatro poetas saímos do Chile, mas não tínhamos grana. Pegamos um ônibus de Santiago pensando em ir até São Paulo.

Eram cinco, portanto. Pretendiam chegar ao Brasil, já com a aragem da abertura iniciada por Ernesto Geisel, e partir clandestinamente de navio para a França. Três dias de viagem se seguiram no ônibus. E o fim da linha foi Porto Alegre.

– Não me lembro mais por quê. Nos ajeitamos em São Leopoldo, cidade universitária. O pessoal da Casa do Estudante Leopoldense nos acolheu. Na porta do quarto, prenderam a placa “quarto dos exilados”.

Ajuda de dom Vicente

No mesmo quarto, estavam Pérez, um companheiro chileno e um brasileiro que fizera parte da guerrilha do Araguaia. Ficaram entre um e dois anos com visto de turista. Não o renovavam. Temiam que a polícia brasileira os recusasse. Foram até a Catedral de Porto Alegre. Tiveram o apoio do então arcebispo, dom Vicente Scherer, e de alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), que os acolheram quando a Polícia Federal estava no seu encalço. Promoveram recitais de poesia nas salas de aula. Fizeram greve de fome. Queriam se legalizar. Fugiram até Santana do Livramento.

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– Tivemos de sair do Brasil. Ficamos embaixo de uma ponte na fronteira. Havia um “porquinho” brasileiro (brigadianos eram chamados de “pés de porco”) numa ponta. Do outro lado, o policial do Uruguai. Passamos a noite olhando o “porquinho”, esperando que dormisse, que não nos enxergasse atravessar a ponte. Aí chegou um carro brasileiro, e as pessoas que estavam nesse carro ficaram conversando com o “porquinho”. Saímos correndo e entramos no Uruguai.

No Uruguai, se legalizaram. Retornaram ao Brasil, de trem. Agora, estavam “limpos”.

O fotógrafo Claudio Pérez

Legal, de volta ao Brasil

Eram 8h de uma manhã qualquer em 1980 quando Pérez e o amigo chileno, de volta a Porto Alegre, tomavam mocotó no Mercado Público para enfrentar o dia duro que teriam pela frente. A fome se perfilava como um dos seus problemas. Mantinham-se como dava, por meio da poesia.

– Comemos aquela comida feita da barriga da vaca…

– Seria mocotó?

– Mocotó! – alegra-se, rindo ao recordar o alimento que o sustentou. – Mocotó é a maravilha do mundo.

Passaram a viver de artesanato, dos recitais de poesia. Até então, ele não era fotógrafo.

– Aí, conheci minha primeira mulher, brasileira. Era de Caxias e estudava Nutrição em São Leopoldo.

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O nome dela, Pérez até diz, mas pede segredo. O sobrenome, oculta. Fica constrangido. A família da namorada era de origem italiana. Pérez estava apaixonado e se casou. Viu o amigo chileno retornar a Santiago. Ficou por aqui, vivendo entre Caxias e São Leopoldo. Esteve em marchas que pediam verbas para a Unisinos. Pintava murais políticos.

– Segui fazendo política, mesmo tendo visto de turista.

Casado desde 1981, conseguiu trabalho em uma agência de publicidade, registro em carteira de trabalho. Desenhava. Teve contato com sua primeira câmara fotográfica.

– Fiz fotos de natureza morta. Era abacaxi, era mamão…

Aí, chegou 1983. Pérez estava bem no Brasil. Em 11 de maio, houve protestos contra Pinochet no Chile.

– Vi imagens e a quantidade de gente que lutava contra Pinochet. Senti necessidade de voltar.

A essa altura, Pérez era o homem da família. Seu sogro morrera de infarto, e ele se responsabilizou pelas mil cabeças de gado que a família tinha nos arredores de Caxias.

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Mas Pérez, o Chi (de Chileno), não queria ser fazendeiro. Queria estar no seu país. Em outubro de 1983, com uma câmera pendurada no pescoço, voltou. A primeira mulher da sua vida ficou, cursando Nutrição – hoje, ela é nutricionista e vive em Florianópolis.

– Para ela, era difícil. Aqui em Santiago, teria de dormir ao lado do quarto dos meus pais. E teria de largar os estudos. Ir para uma ditadura no Chile e dormir ao lado dos sogros era demais.

Em Caxias, ele tinha dois amigos fotógrafos. Juntos, fizeram uma carta falsa por meio da qual Claudio Pérez se apresentaria como correspondente de uma agência brasileira de fotorreportagem chamada Imagem Nativa. Inexistente, é claro. Na carta às autoridades chilenas, o logotipo era uma batata cortada ao meio. Com verniz e inscrições a máquina manual, dizia “Claudio Pérez Ramírez”, número 6986779-7.

Pérez chegou ao Chile de ônibus. Três dias depois, apresentou-se às autoridades da Direção Nacional de Comunicação Social. Foi aceito como correspondente estrangeiro e fez as fotos que Zero Hora publica nesta reportagem.

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Eram as primeiras fotos jornalísticas de Pérez. Custaram-lhe nova detenção pela polícia secreta. E ele argumentava, em português, que era correspondente brasileiro.

Mas se surpreendeu:

– Eu falava português, e um dos policiais falava português como um brasileiro (sem sotaque). Falava português melhor do que eu. Fiquei mudo! Quase me borrei!

Pérez ficou uma semana sem sair de casa.

– Mas saí. Não voltei pra me cagar de medo…

Foi aí que aprendeu a fazer fotojornalismo:

– Sou da geração de “fotógrafos da rua”. Saíamos com um filme para ilustrar um dia. Tínhamos compromisso político. Não podíamos errar.

Pérez viu amigos morrerem. Enfrentou a fúria de Pinochet. Voltou ao Brasil em 1985. Trouxe seu portfólio. Tornou-se, agora sim, fotógrafo de uma agência de verdade, a cooperativa F4, de Juca Martins e Nair Benedicto. Ele os encantou.

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– Olha o Chi! – uma amiga da sua mulher gaúcha gritou ao abrir a porta quando ele chegou à antiga casa de estudantes onde vivera.

Abraçaram-se longamente, ele e a mulher. Foi uma noite tórrida de amor. Mas ela tomara novo rumo, com novo namorado. Despediram-se ali. Divorciaram-se. Caxias do Sul e São Leopoldo ficaram como uma memória boa. Hoje, ele vive em Santiago. É casado pela segunda vez. Tem um enteado e uma filha, num outro Chile.

Confira as fotos do livro de Claudio Pérez