Ele é marinheiro, navegou os sete mares, mas jamais deixou Liverpool. Ela é alemã, casou pela segunda vez em Londres e conheceu o Brasil pelas estradas até atracar sua vida em São Francisco do Sul, Santa Catarina.

Continua depois da publicidade

As duas histórias entraram em rota de colisão em 2003, quando uma garrafa, jogada ao mar pelo inglês em passagem pelo Paraná, cruzou a costa, aportou à beira da praia do Ervino e foi resgatada por crianças, que entregaram a mensagem à Alemã. Dez anos se passaram desde o primeiro encontro, que ocorreu em Joinville, em 2005.

Raymond Ignacio é cardíaco aos 59 anos. Annemarie Dorsett está cruzando o além-mar dos 93. A visita dele deste mês ao Brasil pode ser a derradeira. Os dois não sabem que surpresas a vida pode trazer, mas sentem o gosto de último encontro tomar o paladar.

Ray pede para que a amiga jamais faça piada sobre a morte. E além de não falar sobre o assunto, desaconselha Annemarie a confessar a própria idade.

Continua depois da publicidade

Sem cerimônias, assim como lhe respondeu na primeira carta, ela declara abertamente que viu a rainha da Inglaterra ser coroada quando viveu em Londres. Seus olhos também testemunharam a Segunda Guerra Mundial e acompanharam a agonia das pessoas que esperavam notícias do naufrágio do Titanic. Coisas que o inglês não experimentou em 28 anos no mar.

Das garrafas que Ray lançou do convés no cargueiro em que trabalhou até a aposentadoria, restaram as amizades. Trinta pessoas escreveram em retorno à promessa de Ray a quem encontrasse a garrafa: responder à mensagem com um cartão-postal de Londres. Ele tem um baú com, pelo menos, uma centena de correspondências em diversos idiomas.

Um livro para folhear as memórias

Enquanto Ray tem um baú para limpar, Anne criou um livro para folhear. Ela narra em alemão parte de sua história de vida, uma fatia que começa um ano depois da mensagem dentro da garrafa. A escritora encerra a obra com a foto que eterniza o primeiro encontro dos viajantes.

Continua depois da publicidade

Às cegas, Anne levou Ray para Foz do Iguaçu e Brasília, viagens que ela já havia agendado antes de saber que ele viria. Na contramão das frases alinhadas pela escritora, o marinheiro nem pensa em organizar um livro com as correspondências trocadas com pessoas de todo o mundo.

_ Talvez quando parar minhas viagens _ diz ele, sem se esforçar a imaginar uma data.

O final romanceado do casamento passou longe dos dois. Ela teve dois matrimônios. Para ele, não faltaram oportunidades.

_ Eu poderia ter casado dez vezes, mas eu gosto de viajar.

As cartas lançadas ao mar foram obra do divertimento. O inglês se considera uma pessoa bastante amigável. Nessa vinda ao Brasil, ele pretende rever amigos de Annemarie que são pilotos de avião moradores de Blumenau e falam inglês fluentemente.

Continua depois da publicidade

Como Ray não domina as palavras do português, ter uma anfitriã como a alemã ambientada entre poliglotas é mais do que propício. Ao mesmo tempo, Anne desperta o sotaque britânico adormecido pelo passar do tempo.

Ray já não lança mais cartas nem responde a interlocutores com cartões-postais da Inglaterra, que, na verdade, são uma coleção de cenas dos Beattles. Cenários que ele nunca pensou em abandonar. Seria dar as costas ao “oi-qual-é-seu-nome” de John Lennon, uma pergunta que o astro da música fez a ele e a seus amigos que andavam perto dos portões de Strawberry Fields.

Navegar e voltar para essa memória faz dele marinheiro ancorado, enquanto Anne se refugia na terra que a batizou como pioneira na dança sênior, na beira de um mar que faz serenar as memórias.

Continua depois da publicidade