Com letrinhas tremidas, de quem aprendeu a escrever há pouco tempo, uma menina de apenas oito anos assinou aquele que não seria o primeiro nem o último depoimento em uma delegacia especializada. Desta vez, a assinatura ocorreu em Joinville, onde ela morava com os tios havia poucos meses. A assinatura representava a confirmação de que tudo o que havia sido relatado para a delegada Marilisa Boehm era verdade.

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A pequena garotinha, que nasceu em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, veio morar em Joinville com um casal de tios em dezembro de 2009. Era a terceira vez que ela mudava de lar, pois já havia sido separada judicialmente dos pais biológicos, que, segundo consta nos autos do processo que correu na 4ª Vara Criminal de Joinville, tinham problemas com álcool.

A menina chegou a morar com outros familiares onde supostamente já teria sofrido abusos sexuais. Na época, a terceira tentativa de constituir um lar falhou outra vez. Segundo o depoimento da menina, as agressões iniciaram-se junto com o ano letivo.

Quando as aulas começaram, os tios batiam todos os dias, por vezes com chinelos, outras com uma colher de pau. Quando um deles cansava, o outro batia porque ela não sabia fazer continhas. Quando o “vô” (apelido dado a um amigo que morava na mesma casa) passou a morar com eles, também aderiu às agressões.

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A garota lembrou, durante o depoimento, de um dia em que o “vô” estava com mamangavas (espécie de abelha) e as soltou em cima dela para que soubesse fazer os “temas”. Um dos insetos a picou no rosto. Em outra ocasião, os agressores colocaram agulhas sob as unhas das mãos, embaixo dos pés e nas orelhas.

Era o “caboclo” (entidade espiritual) que estava no corpo do “vô” e ele estava fazendo aquilo para que a menina não fizesse mais “orelhas de burro” nos cadernos e aprendesse a fazer as coisas da escola e não mentir mais.

Tudo acontecia dentro do quarto da garota. O tio segurava o “caboclo” no corpo do “vô”, esquentava as agulhas e as colocava embaixo dos dedos da menina. A tia só olhava. A jovem não podia chorar mesmo sentido muita dor. Quando era o “caboclo” que se aproximava, ela sabia, pois o “vô” falava com uma voz diferente, entortava as mãos e bebia cachaça.

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No mesmo dia em que recebeu as agulhadas, a garota também levou uma surra, descreveu a vítima no termo de declaração juntado aos autos.

O irmão dela, na época com 12 anos, confirmou as agressões sofridas pela irmã em juízo. Embora a menina não conversasse com ele sobre o sofrimento que vivia, o garoto percebia o que estava acontecendo.

– Eles eram nervosos com ela, faziam isso com raiva, não era sem querer – disse o irmão.

As agressões relatadas pela menina foram confirmadas pela orientadora educacional da escola onde ela estudava. Certo dia, a educadora percebeu que a jovem de oito anos andava triste e decidiu perguntar se estava tudo bem. A criança contou que havia apanhado.

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Bastou levantar a blusa para constatar os hematomas e olhar para mãos para perceber as queimaduras. Foi quando a orientadora decidiu denunciar o caso ao Conselho Tutelar. Há relatos, inclusive de que, além das agressões, a menina passou por uma cirurgia para retirar um dos rins em função de um câncer.

– A menina é um amor, daquele tipo que você se apega e gosta. Ela estava muito triste – disse a educadora.

NA JUSTIÇA

Em 9 de abril de 2012, o juiz César Tesseroli assinou a condenação dos tios e do amigo da família por tortura. A tia e o amigo pegaram três anos e três meses de prisão em regime fechado. O tio foi condenado a dois anos e nove meses. O trio entrou com recurso de apelação no Tribunal de Justiça de SC sob a alegação de que não havia provas suficientes para a condenação e que deveriam responder pelo delito de maus-tratos.

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O TJ não recebeu o pedido do tio e julgou as solicitações da tia e do amigo. No início deste mês, os recursos foram negados e os réus presos. O relatório do TJ foi assinado pelo desembargador José Everaldo Silva. Segundo a polícia, o tio foi preso no início do ano.

PARADEIRO

Com a condenação dos tios, pela segunda vez a garota foi destituída do lar. Ela e o irmão foram acolhidos em um abrigo de Joinville. No final de 2011, os irmãos voltaram para a cidade de origem, no interior do Rio Grande do Sul. Segundo apuração de “AN”, a Justiça gaúcha tentou viabilizar uma adoção internacional.

Porém, segundo o Tribunal de Justiça do RS, os irmãos, hoje com 12 anos (a menina) e 16 (o menino), estão sob a guarda de uma família da cidade natal deles. O casal está entrando com processo de adoção. O tribunal não informou se a família tem algum grau de parentesco.

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CONTRAPONTO

Segundo o relatório do Tribunal de Justiça, a tia e o amigo da família disseram em depoimento que não agrediram a menina e sequer participaram das agressões. A única confissão parcial é do tio, que admitiu apenas ter surrado a criança em alguns momentos. Durante os depoimentos judiciais, a tia aponta o amigo como único responsável pelo “flagelo infligido à vítima”, porém, ele nega qualquer acusação.

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