Marina Monte Barardi tem 31 anos. Nos últimos quatro deles, ela foi quatro vezes para África e uma para a Ásia. Os destinos dão a pista de que o objetivo dessas viagens talvez não seja turismo. Se você pensou isso, acertou. Ao invés de visitar pontos turísticos, Marina esteve em hospitais, em campos de refugiados e conheceu com as próprias mãos de enfermeira a fragilidade da vida diante da miséria.

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Marina é voluntária do Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização internacional de ajuda humanitária, desde 2016. Nascida em São Paulo, cresceu em Florianópolis, da onde parte para as missões do MSF. A paixão pelo trabalho humanitário não tem uma origem certa.

– Eu sempre gostei da história dos santos, como Madre Theresa e São Francisco de Assis, do lado humano, da simplicidade. Talvez tenham sido minha inspiração principal – conta.

Quando pequena sonhava em realizar o que faz hoje e quando já tinha idade para planejar a carreira, escolheu cursar enfermagem e fazer duas especializações, uma em saúde pública e a outra em neonatologia.

Fiz a graduação já com essa ideia, depois fiz especialização sabendo que o MSF precisaria de enfermeira obstetra. Foi tudo planejado.

E deu certo. Aos 28 anos, Marina embarcou para a primeira missão. Ela passou três meses na Angola para trabalhar no controle da epidemia de febre amarela.

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– Eram onze hospitais e eu visitava todos pelo menos duas vezes por semana. Para chegar em alguns eram cinco horas de viagem. Eles chamavam de hospital, mas era uma estrutura bem simples, era menos que os nossos postos de saúde – recorda.

A imagem que mais marcou nessa expedição, foi o sorriso de uma mãe, que depois de muita insistência aceitou viajar por várias horas para levar o filho de dois anos a um hospital com mais estrutura. Ela lembra que o bebê estava desnutrido, com pneumonia, várias outras doenças e, segundo Marina, provavelmente morreria se a mãe não tivesse cedido ao pedido dos voluntários:

– Se ficasse não tinha muito a ser feito. No final, ela aceitou ir para o hospital central e a criança se recuperou surpreendentemente rápido e a mãe ficou superagradecida, não queria mais ir embora do hospital, falou que queria ficar morando com a gente. Essas histórias são muito gratificantes, dão ânimo para continuar.

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Confira os países em que a enfermeira Marina atuou nos últimos quatro anos, junto de outros profissionais da organização Médicos Sem Fronteiras (Foto: Arte NSC Comunicação)

Guiné-Bissau também esteve na rota de Marina. O país, que fica na costa atlântica ocidental da África, é o sexto do mundo com a maior taxa de mortalidade de recém-nascidos, de acordo com relatório publicado pela Unicef em 2018. A cada mil crianças nascidas vivas, 38 morrem antes de completar um mês de vida.

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Em 2017, a organização abriu a primeira UTI neonatal e pediátrica do país. Marina recebeu o convite em novembro daquele ano e três semanas depois estava com malas prontas para embarcar. Ficou por lá durante seis meses. Viu recém-nascidos morrerem com uma frequência surpreendente. Eram, em média, quatro por semana. Mas a morte não se banaliza com a repetição e o esforço para salvar cada vida, às vezes, exigia criatividade.

Para driblar a falta de materiais, a jovem enfermeira conta que teve que usar sonda nasogástrica, colocada pelo nariz, como sonda urinária. Sem aparelho automático para manter crianças respirando, os profissionais se revezavam um dia inteiro apertando o respirador manual.

Não tem como calejar. Você vai aprendendo a lidar. No começo, eu era mais frágil, mais sensível, me comovia mais, chorava mais. Depois você vai amadurecendo e aprendendo a lidar com as situações difíceis.

Em maio deste ano, Marina voltou ao país e encontrou uma estrutura melhor. Respiradores automáticos chegaram em outubro, quando ela já estava voltando para casa.

Como funciona a organização Médico Sem Fronteiras

Apesar de serem chamados de voluntários, quem trabalha para a organização Médicos Sem Fronteiras recebe uma ajuda financeira. O valor inicial é de quase 1 mil euros por mês, que pode aumentar para quem, como Marina, faz carreira na organização. Os profissionais podem ser de diversas áreas e precisam falar ao menos uma língua estrangeira.

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Em missão, trabalham oito horas por dia, com um dia de folga por semana. Eles recebem alimentação, hospedagem que pode ser em hotéis, casas alugadas ou até acampamentos. Há equipes que pensam a segurança, os deslocamentos e também tradutores que ajudam na comunicação. Tudo para tornar o trabalho mais eficaz:

– É tudo muito bem organizado. Há equipes de logística, de segurança, há reuniões frequentes e a gente é informado o tempo todo de como está o projeto.

Atualmente, apenas Marina trabalha com a organização, mas segundo a assessoria do MSF no Brasil, outros catarinenses já foram voluntários. Quem preenche os requisitos e se oferece, não pode escolher para onde quer ir, mas pode recusar o convite. Foi o que a Marina fez quando foi chamada para ir ao Iraque em 2017.

– Era um contexto inseguro, de guerra. Aí, eu falei: “não estou preparada para isso” – conta.

Mas ela aceitou ir para outra área de conflito a 3 mil quilômetros do Iraque, no país mais jovem do mundo. O Sudão do Sul, na África, conquistou a independência em 2011, mas até hoje vive em guerra civil. Lá, Marina trabalhou em uma campanha de vacinação durante três meses em 2018.

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– Quando fui, estavam em trégua, mas mesmo assim há instabilidade. O MSF tinha um campo e a segurança era superrestrita.

Superação de limites e lágrimas no Sudão do Sul

Não foram os homens em guerra que fizeram Marina experimentar o desespero, foi a natureza. Depois de passar quatro dias vacinando crianças em uma vila, ao retornar para base a equipe se deparou com o caminho engolido pelo rio. Como a vila já estava longe, a equipe decidiu acampar, mas não imaginava que a espera pelo resgate seria longa. Foram três dias até que a equipe de logística do MSF conseguisse chegar com um barco para a travessia. Nesse período a água e a comida acabaram.

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Refugiados tentando atravessar o rio pela margem mais baixa no Sudão do Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

Marina bebeu a água do rio preparada com cloro e fervida. Mas o pior foi com a comida. Ela é vegetariana. No primeiro dia comeu arroz. No segundo, comida desidratada e no terceiro quando tudo havia acabado, só restou a carne de cabra que os outros voluntários da equipe conseguiram.

– Mesmo com fome, comi por obrigação, enxugando as lágrimas – lembra.

Outra situação que fez Marina chorar também foi no Sudão do Sul, ao entrar em uma escola destruída por balas de canhões e se deparar com desenhos de crianças feitos nas paredes com carvão.

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– A gente fez a campanha de vacinação numa escola que estava destruída em uma das vilas. Os desenhos feitos com carvão eram de cabanas pegando fogo, pessoas correndo. Superchocante. Lembro que chorei. Você fica pensando no impacto que isso vai ter na memória das crianças – pondera.

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Desenhos nas paredes de uma escola destruída pela guerra no Sudão do Sul (Foto: Arquivo Pessoal)

Marina não nega que em momentos mais difíceis, a vontade de desistir aparece. Mas ela explica que desaparece ao pensar que uma situação limite para ela, é rotina para muitas pessoas. É o caso dos refugiados que ela conheceu em Bangladesh, no Sul da Ásia, durante dois meses entre 2017 e 2018. Foi a missão mais curta, mas não menos intensa.

É impressionante o tamanho do campo. Chegavam, pelo menos, mil pessoas por dia. Quando saí de lá já tinham 700 mil refugiados.

Hoje mais de 1,1 milhão de pessoas vivem no campo Rohinjya. Os refugiados, a maioria muçulmanos, vêm de Mianmar por questões religiosas e políticas.

– Eles chegavam só com uma trouxinha, com o que dava para carregar nas costas. Muitas mulheres grávidas, idosos, crianças, muitas famílias vinham juntas e caminhavam 15 dias para chegar – relata.

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A volta para casa

Em meio a tristeza há espaço para momentos mais leves. A enfermeira diz que os voluntários organizam pequenas festas para comemorar aniversários e praticam esporte quando é possível. Questionada

se viveu um amor sem fronteiras, ela foi simples e direta:

– Não. Mas têm muitos casais MSF – disse, referindo-se aos casais formados por voluntários.

A jovem diz que a sensação ao voltar para casa é de estranhamento. Na bagagem, ao invés de souvenirs, estão outras lembranças: histórias e pessoas de um mundo que muitos só veem pela televisão ou até mesmo desconhecem. Um mundo que ainda tem muitas fronteiras, que Marina está trabalhando para derrubar:

O meu maior desejo é que a desigualdade fosse diminuída ou não existisse. E que todas as pessoas tivessem a oportunidade de ter o mínimo necessário para ter uma vida confortável, alegre e saudável.

O passaporte de Marina está pronto, à espera do próximo carimbo.