Para marcar um ano da maior tragédia do Rio Grande do Sul, Santa Maria receberá de sábado até segunda-feira o 1° Congresso Internacional Novos Caminhos – A Vida em Transformação. Especialistas locais, internacionais e de outros Estados terão três dias para debater a prevenção de desastres como o que matou 242 jovens em 2013. A intenção é transformar a cidade em referência na segurança e prevenção de tragédias.

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Enquanto ainda se preparava para o seminário, na sexta-feira, a cidade passou a integrar a ação batizada de Santa Maria Floresce, organizada pelo Grupo de Trabalho Ações por Santa Maria. Quem passa pelo Centro pode observar várias lojas com as vitrines enfeitadas com flores, tecidos e balões brancos. Algumas pessoas também enfeitaram a fachada de suas casas. A ação vai até a segunda-feira, quando a tragédia completa um ano. Na data, o comércio deve fechar mais cedo, às 18h, para que os funcionários acompanhem as homenagens.

A ótica e joalheria Gaiger, além de enfeitar a vitrine com rosas brancas, também trocou a cor do uniforme dos funcionários, que nestes dias estão usando branco.

– Nada vai apagar o que aconteceu, mas é uma demonstração de apreço às famílias – diz Luiz Guazina, gerente da loja.

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A dona de casa Carmen Costa, 55, colocou flores em sua casa e na porta da sacada de sua mãe.

– Perdemos um vizinho e amigos, por isso participamos. Foi uma ideia linda e acho que todos deveriam enfeitar suas casas – comenta Carmen.

A partir deste sábado, ganha destaque a programação do congresso. O presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Alves Ferreira, idealizou o evento depois de passar cinco dias, em outubro, nos Estados Unidos, visitando a cidade onde incendiou uma casa noturna da cidade de West Warwick, há mais de 10 anos.

– Vi como eles fizeram lá e estruturamos aqui. Sabia que tínhamos que fazer algo para fechar este ano. É a resposta que podemos dar para a sociedade – disse o presidente.

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Ferreira conta que o evento, marcado para começar no sábado e se estender até segunda-feira, será dividido em quatro eixos: prevenção, saúde mental, ação social e justiça.

Um dos destaques do evento é o debate sobe as responsabilizações

Um dos debates mais acalorados deve ocorrer no espaço dedicado ao último eixo. Participarão o delegado Marcelo Arigony, um dos responsáveis pela investigação da Polícia Civil sobre o caso, advogados da associação e o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Marcelo Dornelles. Um dos pontos mais controversos é a falta de responsabilização de agentes públicos da prefeitura de Santa Maria.

Para a abertura, às 9h de sábado, está programada a leitura de um discurso enviado por David Stevens, diretor do Centro de Excelência para Redução de Desastres da Organização das Nações Unidas (ONU), que não pode comparecer ao congresso.

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Além das discussões, os mais de 300 inscritos também presenciarão uma programação cultural, incluindo apresentações de dança, música e teatro, além da reprodução do documentário sobre a tragédia Janeiro 27, que tem a direção de Luiz Alberto Cassol e Paulo Nascimento.

Por fim, uma atmosfera de simbologias deve se formar na praça da cidade a partir das 16h30min de segunda-feira. Uma delas será a sinfonia de 242 instrumentos de percussão, simbolizando as vítimas.

Como há previsão de mais movimento pelo centro no final de semana, o tenente-coronel Sidenir Cardoso, comandante do 1º Regimento de Polícia Montada (RPMon) explica que haverá um efetivo maior de agentes pelo centro da cidade ao longo dos dias de homenagens e manifestações.

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– O trabalho da Brigada não vai parar, mas haverá aumento no efetivo para garantir a segurança de todos que querem prestar homenagens e evitar algum tipo de ação de vandalismo – explica Cardoso.

“Depois da tragédia da Kiss segurança ganhou mais destaque”

Um dos palestrantes da manhã de domingo, do Congresso da Associação, é Marcelo Lima, diretor geral do Instituto Sprinkler Brasil (ISB), que promove o estudo de medidas de prevenção de incêndios sem fins lucrativos. Conforme pesquisas do ISB, o número de incêndios em locais comerciais, como restaurantes, shoppings, depósitos e escolas ganharam mais atenção do poder público em todo o país. No Rio Grande do Sul, as notícias veiculadas sobre incêndio ao longo de 2013 aumntou 93% em relação a 2012.

O trabalho do Instituto é baseado nas notícias porque em muitos estados os Bombeiros não divulgam levantamento dos incêndios.

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– Acho difícil que o número de incêndios tenha crescido tanto em um ano, no Rio Grande do Sul. Dá para dizer que depois da Kiss o tema é que ganhou espaço e atenção, da imprensa, dos políticos. Agora se fala em leis e normas para regulamentar isso, como a própria Assembleia Gaúcha recentemente aprovou uma legislação estadual de prevenção de incêndio – explica Lima.

Ele lembra que nos Estados Unidos há uma tradição de muito investimento em prevenção e incêndio, e que quando houve a tragédia na boate The Station, em Rhode Island, foi considerado uma situação de emergência, e que cerca de seis meses após o incêndio o país já tinha formulado propostas de aperfeiçoar a lei e normas sobre o tema.

– O que podemos dizer que já foi feito no país, que alguém diga “isso mudou por causa da Kiss”? Muito pouco. A lei estadual foi um salto qualitativo, mas ainda há uma parte da regulamentação, que tem que deixar de pensar no ônus do empresário, do proprietário que exerce uma atividade econômica e sim na segurança de todas as pessoas.

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“A cidade precisa adotar uma cultura de segurança”

Outro palestrante convidado para o congresso, J. Pedro Corrêa, explica que as pessoas precisam pensar sempre em segurança, e fazer pequenas coisas da rotina da forma correta para evitar qualquer tipo de acidente. Há 26 anos ele trabalha no Programa Volvo de Segurança no Trânsito e também estuda o que chama de cultura da segurança.

Ele explica que pequenas atitudes mudam a forma de pensar no tema, como por exemplo, quando um pai ou mãe compram uma bicicleta para o seu filho e nem sempre lembram que comprar capacete ou outros materiais de proteção.

-O caso da Kiss é um exemplo claro de como as pessoas não pensam segurança. Foi uma série de erros, de hábitos errados. Por isso eu proponho um projeto que faça com que as pessoas comecem a mudar seu modo de pensar e agir. Mas tem que ser comprada pela cidade inteira, pela prefeitura que pode criar leis, não pode ser uma ideia isolada ou de um grupo de pessoas – defende Corrêa.

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Ele lembra que as pessoas devem começar agora trabalhar ações que incentivem prevenção, seja em casa ou no trânsito, ou em até locais públicos como restaurantes, casas noturnas, sempre pensando no que pode ser mais seguro. Corrêa ainda defende a criação de uma secretaria municipal de Segurança e de Conselhos, que conte com a atuação de profissionais técnicos e especialistas na área e que estudem situações de melhorar as condições de segurança na cidade.

“O número de mortos e de feridos poderia ter sido bem menor”

Pesquisadores de dois grandes projetos brasileiros irão falar sobre prevenção: um contra incêndio e o outro na elaboração de grandes eventos. O trabalho mais conhecido é do coronel Paulo Chaves, responsável pelo Corpo de Bombeiros de São Paulo e pesquisador em proteção contra incêndio. Ele apresentará resultados do projeto Brasil Sem Chamas, do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação.

No painel, ele deve listar o que foi identificado nestes quase 10 anos de pesquisa e mostrar a situação dos trabalhos de combate e prevenção no país. Para ele, o mais grave é a falta de Corpo de Bombeiros em 86% dos municípios brasileiros e o número reduzido de profissionais para cuidar melhor da prevenção e do combate a incêndio nos 784 municípios onde há bombeiro.

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– Se na noite do incêndio na boate Kiss existisse um número maior de bombeiros de plantão, com no mínimo uma viatura de combate a incêndio, cinco bombeiros bem equipados e bem treinados, além de uma viatura de salvamento, com no mínimo quatro bombeiros de plantão também treinados e equipados, o número de mortos e de feridos, poderia ter sido bem menor- argumentou Chaves.

Também serão abordadas as questões de segurança em eventos.

– Percebemos que quando houve o fato todo o mundo se sensibilizou, se movimentou, cidades bloquearam casas de show, quiseram rever tudo, mas parou por aí, não se criou nenhuma ação palpável. Queremos propor alternativas para as autoridades – disse o orientador do trabalho, professor Rubens Aires Guimarães.

Saúde Mental

Em uma das mesas haverá a apresentação do serviço Acolhe Saúde, criado após a tragédia.

– Para os sobreviventes, a precariedade da existência humana foi apresentada junto à luta pela própria sobrevivência, ninguém sai imune disso. Do lado dos familiares, a perda de um filho, numa situação traumática, violenta e de grande impacto não é vivida como a experiência de uma morte natural, sendo mais propícia para o agravamento do desencanto com a vida e da instalação de um luto patológico – disse Volnei Dassoler, membro do comitê gestor do serviço.

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Questões como estas integrarão o debate. A ideia é expor como estão vivendo os familiares, os sobreviventes e aqueles que participaram do resgate das vítimas, além de discutir o que pode ser feito daqui para a frente para amparar estas pessoas.

Justiça

Está marcada para às 17h30min do domingo, um dos debates mais esperados. Para discutir a atuação da Polícia Civil, Justiça, Advogados e Procuradoria, no caso Kiss, o painel reunirá autoridades que pretendem discutir o que foi feito até agora em termos legais e o que ainda pode ser feito. Mais cedo, às 10h45min do mesmo dia, haverá uma mesa-redonda com associações de familiares e sobreviventes de incêndios para promover uma troca de experiências. Participarão os de Santa Maria e da Argentina. A presença da instituição americana ainda não foi confirmada.