Homens à paisana, encapuzados e fortemente armados semeiam o pânico na Nicarágua. Sua intervenção nos protestos antigovernamentais, em plena luz do dia, abriu o debate sobre o papel que o Exército deve desempenhar em uma crise deflagrada, que deixou 210 mortos em dois meses.
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Moradores e organismos de direitos humanos denunciam constantemente que parapoliciais e paramilitares agem com a Polícia para reprimir os protestos e desmontar os bloqueios de ruas. Mas o governo nega e acusa os manifestantes de “delinquentes”.
Em um país com um histórico em que os militares tiveram protagonismo e que viveu duas guerras seguidas nos anos 1970 e 1980, alguns acreditam que o Exército, militarmente, poderia parar de imediato estes grupos e politicamente pressionar a renúncia de Ortega.
“Não pode haver dois exércitos neste país. O exército da Nicarágua constitucionalmente deveria desarmar os paramilitares”, avaliou o acadêmico Carlos Tünnermann, delegado de uma aliança opositora que dialoga com o governo.
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Desde que começaram os protestos, em 18 de abril, o Exército emitiu dois comunicados para se comprometer a não reprimir os manifestantes, fazer um apelo ao diálogo e o cessar da violência.
Mas gerou desconfiança a escolta que o comandante do Exército, general Julio César Avilés, deu a Ortega no primeiro comparecimento durante a crise e indicações dos moradores que envolvem militares ou ex-militares nas operações de repressão aos protestos.
“Se o Exército pretende contribuir para uma solução pacífica através do diálogo, deve e tem que desarmar os bandos paramilitares”, disse à AFP Edmundo Jarquín, ex-candidato presidencial por um movimento dissidente da governista Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, esquerda).
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– O braço empresarial –
Para os especialistas, o comportamento do Exército, que constitucionalmente deve ser uma instituição “apartidária”, “apolítica” e “não deliberante”, tem relação principalmente com a defesa dos interesses econômicos.
Através do Instituto de Previdência Social Militar, seu “braço empresarial”, explica à AFP o analista em temas militares Roberto Orozco, dispõe de construtoras, residenciais, imobiliárias, hospital, financeiras, ações na Bolsa de Valores de Nova York e outros investimentos.
“Esse pode ser um dos fatores que inclinam a balança, quando seus interesses corporativos forem ameaçados ou se chegar a um ponto de ingovernabilidade total”, destacou.
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Em seu ensaio, intitulado “El nuevo protagonismo militar” (O Novo Protagonismo Militar), a especialista Elvira Cuadra diz que as forças armadas estão “em uma posição de subordinação interessada perante Ortega”.
“Não são atores passivos”, mas parte de uma complexa rede tecida entre o governo, grupos de poder econômico e a elite militar e policial, acrescenta a especialista em temas de segurança e defesa.
– A fidelidade –
O Exército nicaraguense surgiu da guerrilha do FSLN, que depôs o ditador Anastasio Somoza em 1979, e passou de 90.000 a 13.000 efetivos com um orçamento de 75 milhões de dólares, segundo relatório de 2016 da Rede de Segurança e Defesa da América Latina.
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Orozco e Cuadra explicam que o governo de Ortega impôs reformas ao Código Militar, entre elas o tempo de serviço e a idade de aposentadoria, para manter a velha guarda sandinista.
“O Exército está dividido. A cúpula está comprometida com Ortega, não só pelos negócios, mas porque manteve seus cargos. Mas dos coronéis para baixo estão vendo os efeitos que teria para a instituição o compromisso da chefia”, comentou Orozco.
Apesar de o cargo ser por cinco anos, o general Avilés, que assumiu em 2010, foi ratificado por Ortega para um segundo período, de 2015 a 2020.
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Os especialistas destacam que, no plano institucional, o mais crítico é o estancamento nas ascensões e na promoção de cargos intermediários, o que gerou um descontentamento interno.
– Remédio ou doença –
O Exército da Nicarágua, que nos últimos anos reativou seus vínculos com os militares russos, também tem boas relações com os Estados Unidos.
Se se envolver diretamente a favor de Ortega e reprimir os protestos – o que poderia desatar uma violência descomunal – se expõe a sanções externas, como as que Washington aprovou contra chefes de Polícia envolvidos na repressão, segundo analistas.
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Mas para o comandante da revolução Luis Carrión Cruz, o Exército deve abandonar a posição de “cumplicidade passiva” e desarmar os paramilitares.
O especialista em segurança Roberto Cajina considera inconveniente que os militares se tornem árbitros políticos e Cuadra alerta para o perigo de vê-los como “salvadores” quando na verdade interviriam para zelar por seus interesses.
“Nos interessa que o Exército não seja uma força deliberante porque depois ficam com o bolo”, destacou Douglas Castro, um dos dirigentes estudantis dos protestos.
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Orozco avalia que a crise deve ser superada politicamente. Se o Exército intervir, diz, “o remédio pode ser pior que a doença”.
* AFP