O destino é Santiago de Compostela, mas o conselho aos peregrinos é que caminhem sem pressa de chegar. Por dias, eles cruzam o norte da Espanha passando por paisagens estonteantes e povoados medievais, colocando o corpo à prova em uma caminhada que descrevem como mística, mágica, espiritual.

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Somente em 2014, até dezembro, 240 mil pessoas de cem países lançaram-se à empreitada, seguindo as trilhas de milhões de romeiros – entre eles, o próprio São Francisco, que teria feito a peregrinação 800 anos atrás. O número é da Oficina del Peregrino e não considera os turistas – que na região da Galícia atingem a casa do milhão -, mas aqueles visitantes que percorrem longas rotas a pé, de bicicleta ou de cavalo.

No coração de Santiago, os caminhantes encontram a catedral erguida sobre o solo onde, no século 9, foi encontrada a tumba de um dos 12 apóstolos, São Tiago. Havia uma necrópole romana sob o bosque Libredón que, nos séculos seguintes, passou a atrair peregrinos de toda a Europa. O fluxo minguou depois de 1589, quando os ossos foram roubados por um pirata, pois só foram recuperados mais de 300 anos depois. Os peregrinos voltaram nos anos 1990, impulsionados por campanhas turísticas do governo espanhol.

De peregrino para peregrino: dicas para fazer o Caminho de Santiago

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Quando nos referimos ao Caminho de Santiago, estamos, na verdade, falando de vários caminhos, pois os peregrinos sempre partiram de múltiplos locais da Europa. Na Idade Média, havia os que vinham da distante Turku, a capital histórica da Finlândia, e movidos pela fé cruzavam Países Baixos, Alemanha e França. A viagem era repleta de perigos – ladrões, doenças (a peste negra, no século 14, por exemplo) e até guerras. Por isso, alguns preferiam enfrentar o risco de naufrágio optando pelo transporte de barco.

A catedral onde foi encontrada a tumba de um dos 12 apóstolos

Foto: Tilton Martins dos Santos, arquivo pessoal

De outros pontos cardeais também surgiam e surgem até hoje peregrinos: de Portugal, ao sul, da França e da Itália, ao leste etc. Com a proximidade de Santiago, as caminhadas dão forma às principais rotas, que por sua vez confluem no caminho francês.

Cidades inteiras cresceram às margens dessas rotas, com castelos e mosteiros que hoje fazem a alegria dos caminhantes. Mas as atrações vão além dos povoados medievais: as principais regiões vinícolas da Espanha estão ali – quem disse que caminhada não combina com vinho e gastronomia? -, e as paisagens são, com o perdão do trocadilho, de tirar o fôlego.

Espiritualidade e conversas na estrada

O que move as incontáveis gerações de peregrinos a percorrer as vias rumo a Santiago? A resposta aponta para a devoção religiosa, já que o destino final é a tumba de um dos 12 seguidores prediletos de Cristo. No entanto, o caminho não é trilhado apenas por católicos. Os amantes da natureza festejam as montanhas, os vales e os bosques. Os fãs de história vão pelas cidades muradas, as igrejas românicas e góticas e as pontes medievais. Mas por tudo que uma longa caminhada demanda, do corpo e da mente, trilhar o Caminho de Santiago ultrapassa os atrativos turísticos.

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Tilton Martins dos Santos fez a peregrinação quatro vezes

Foto: ARQUIVO PESSOAL

– O caminho exige, do caminhante, saber seus limites, ter persistência, disciplina, companheirismo – explica Tilton Martins dos Santos, membro da Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela do RS (Acasargs) e do conselho de turismo de Santo Antônio da Patrulha.

Hoje com 74 anos, Tilton peregrinou pela primeira vez em 1999 e, desde então, voltou em três ocasiões, percorrendo os caminhos francês, aragonês e português. Para ele, é um momento de meditar sobre a vida e praticar o desapego das coisas materiais:

– Minha motivação é me desprender do dia a dia, do trabalho, porque, quando vou lá, é liberdade. Vou sem telefone, sem relógio, só com a mochila e o cajado. E aprendo muito. Hoje, você tem dificuldade de pensar na sua vida, como está vivendo e se portando com relação à sociedade. O caminho nos oferece essa oportunidade.

Tilton sempre percorreu os trajetos a pé – no entanto, é possível fazê-los a cavalo ou de bicicleta. A opção pelo cavalo é pouco usada pois não são todos os albergues que oferecem acomodação para os animais. Além disso, os peregrinos que estão a pé sempre têm prioridade nos albergues.

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Ao se aposentar, o ex-comandante da Brigada Militar José Dilamar Vieira da Luz também trilhou o caminho francês em 2000:

– Ao caminhar, suas inquietações, seus desafios, suas conquistas, o exercício do ser é testado a todo instante. Tais pensamentos são compartilhados.

José Dilamar Vieira da Luz encarou o percurso em 2000, depois de se aposentar

Foto: ARQUIVO PESSOAL

Uma parte de bicicleta

Em 2000, o executivo Denis Pizzato partiu de Roncesvalles, na Espanha, em cima de uma bicicleta que decidiu abandonar 10 dias depois, em Burgos. Preferiu percorrer os 480 quilômetros restantes a pé, em uma jornada de 20 dias até Santiago de Compostela.

– De bike tudo passava muito rápido, e as pessoas que eu conhecia, não tornava a ver, pois nossas velocidades de avanço eram diferentes. Caminhando, pude aproveitar o trajeto na sua plenitude. Conhecia alguém, caminhava junto, conversava bastante. Cada um tinha algo para me dizer ou perguntar, era uma troca de conhecimentos e visões de mundo muito rica – conta.

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A pé, Pizzato conheceu peregrinos de todas as classes sociais, com crenças e nacionalidades diversas. Foi uma das boas surpresas que a viagem reservava para ele, porém seu objetivo principal era outro:

– Fui para repensar o rumo da minha vida profissional e, ao longo do caminho, a resposta apareceu de forma natural e segura, decisão que considero acertada até hoje.

Em 2000, Denis Pizzato pedalou parte do trajeto, percorrendo o restante a pé

Foto: ARQUIVO PESSOAL

Segundo o executivo, algo de mágico acontece no Caminho, pois as coincidências surgem a todo minuto, como pistas disponíveis a quem estiver aberto para interpretá-las:

– É uma evolução espiritual marcante.

O caminho francês

Quando alguém fala Caminho de Santiago, no singular, é normalmente ao caminho francês que está se referindo. Já bastante popular, foi tornado ainda mais famoso no livro Diário de um Mago, de Paulo Coelho. São cerca de 760 quilômetros de extensão, que reúnem a melhor infraestrutura disponível nos caminhos, com albergues a cada 10 ou 15 quilômetros e sinalização adequada.

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Uma viagem de peregrinação pela Terra Santa

A maioria das rotas vindas do continente Europeu converge nesse trajeto, famoso por suas casas de estrutura pré-romana, que atravessa o noroeste da Espanha. É comum iniciar pela rota navarra, partindo de Saint-Jean-Piedde-Port, na França, ou de Roncesvalles (20 quilômetros depois, para os que preferem não encarar os Pirineus), na fronteira da Espanha com a França. Outra opção usual é a rota aragonesa, com início na cidade de Somport, no limite da França, de onde são 858 quilômetros até Santiago.

Ambas as rotas convergem no caminho francês quando alcançam Puente de la Reina, em Navarra. Dalí em diante, alguns pontos turísticos interessantes são Astorga, Ponferrada e a aldeia El Cebreiro, que abriga o santuário de Santa Maria A Real e, nele, o cálice que chegou a ser identificado como o Santo Graal, na entrada da Galícia.