Não há como olhar para Trapaça sem ter uma sensação de déjà vu. É a visão de O. Russell para Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, onde o clima cínico e a corrupção dos anos 1970 estão intrínsecos à narrativa. Não à toa, o diretor expõe de início esta abordagem irônica em meio à atmosfera criminosa que estamos prestes a embarcar: o silêncio que envolve o tratamento de um cabelo postiço. A primeira trapaça. É seu desejo incorporar o cinismo à perspectiva daquele mundo. Como o filho pode ser tão querido pelo pai, já que está sempre esquecido pelos cantos? A preocupação é dissimulada? Ele brinca com um grito extraordinário no banheiro e parodia a sensação de liberdade de Rosalyn ao supor o destino do marido. Há algo jazzista e clássico em sua estrutura, mas, ainda assim, espirituoso. Não é algo seco como o cinema scorseseano. É leve. O que traz os benefícios e as falhas, pois O. Russell também trava nas limitações que autopromoveu. Trapaceia novamente. Esboça uma estrutura ambiciosa, mas aposta nas gags. Traveste o drama bobinho e superficial em algo profundo e inteligente. É exatamente o oposto de O Lobo de Wall Street. Não só em estrutura, mas em personagens. O policial de Bradley Cooper, por exemplo, é a antítese do agente vivido por Kyle Chandler naquele filme. Ele é suscetível à ganância. Gosta de quebrar as regras. Apaixona-se por aquela vida de crime. A cena em que ameaça o personagem de Louis C. K. (impagável!) é um dos melhores momentos do longa. Já Amy Adams, que começa prejudicada por uma aproximação terrível feita para destacar seu choque, é excelente na composição dividida e duvidosa de Sydney: o travelling que aponta a mudança de lado dela em uma cena específica é brilhante. E se Jennifer Lawrence aposta no preocupante overacting, sobra para Christian Bale e Jeremy Renner roubarem a cena. O primeiro, principalmente, é o De Niro de O. Russell, ainda que aquele também apareça. A maneira como conduz as palavras e os gestos de vendedor só não são melhores do que a forma teimosa com que ajeita seus óculos – evidenciando um tique tão natural que até quando está sem eles, mexe ligeiramente seu nariz, como se algo o incomodasse. O maior problema é que Trapaça poderia ser muito mais do que almeja. Mas, mais uma vez, prefere dar jus ao título.

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