Sempre que o ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães (1916-1992) ouvia críticas à qualidade do parlamento, sussurrava ao interlocutor:
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— Se você acha esse Congresso ruim, espere o próximo.
Domingo passado, durante a sessão que avaliou o impeachment de Dilma Rousseff, o comentário irônico ganhou ares de profecia. A votação sobre o afastamento da presidente — um dos momentos mais graves da República — ocorreu em clima circense com direito a chuva de papel picado, dedicatórias familiares, loas à ditadura, invocações divinas, menções à maçonaria, a Jerusalém e até uma guerra de cuspe. A falta de compostura de Suas Excelências é a face mais visível das distorções do atual sistema eleitoral, responsável por formar bancadas fragmentadas, suscetíveis a barganhas, repletas de “puxadores de voto” sem cultura política e de pouca identificação socioeconômica com a sociedade.
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Composição da Câmara dos Deputados não reflete diversidade social do país
Especialistas defendem mudanças no sistema político eleitoral brasileiro
Graças à transmissão sem cortes das mais de 12 horas de sessão, os brasileiros puderam desvendar as entranhas da Câmara até o mais baixo clero legislativo. O espetáculo proporcionado pelos 511 deputados reunidos para julgar o impeachment — e que acabaram, também eles, julgados — assustou muita gente a despeito do resultado da votação.
— O que vi me deixou horrorizada. Parecia um Carnaval — lamenta a cientista política Lucia Hippolito (leia entrevista abaixo).
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chamou, no Facebook, as declarações de “estapafúrdias”. O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, relator do mensalão do PT, manifestou revolta via Twitter: “É de chorar de vergonha! Simplesmente patético!”. Pouco antes, Barbosa havia citado reportagem da revista britânica The Economist que listou os pronunciamentos mais esdrúxulos dos deputados. O ex-ministro não estava só: segundo levantamento da BBC, a palavra “vergonha” foi digitada mais de 270 mil vezes no Twitter por cidadãos de diferentes cores partidárias após testemunhar cenas como a chuva de papel lançada por Wladimir Costa (SD-PA).
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Há motivos de sobra para envergonhar-se. Segundo a ONG Transparência Brasil, 53% dos deputados são alvos de processos na Justiça ou em Tribunais de Contas. Mas por que a frase de Ulysses Guimarães é confirmada pela eleição de bancadas cada vez mais suspeitas e com menos líderes da estirpe do próprio Ulysses, respeitado até por adversários?
— O modelo eleitoral brasileiro favorece a eleição de pessoas populares, não necessariamente representativas de interesses da sociedade. Partidos gostam de “candidatos-celebridades” que carregam candidatos com menor densidade eleitoral. É um sistema anacrônico — diz o cientista político Murillo de Aragão, autor do livro Reforma Política, o Debate Inadiável.
Legislatura teve início com apenas 36 eleitos só pelos próprios votos
Pelo atual modelo, quanto mais votos um partido acumula, mais deputados faz. Por isso, as siglas apostam em figuras com apelo popular, mesmo sem virtude política, para somar grandes votações e conquistar mais cadeiras. Esse mecanismo gera distorções. Uma delas é a possibilidade de um candidato se eleger com muito menos eleitores do que outro, desde que seja filiado a um partido bem votado. Em São Paulo, Fausto Pinato (PRB) teve 22 mil votos e saiu vitorioso, enquanto Mendes Thame (PSDB) ficou de fora com 106,6 mil. Isso ocorreu porque a estrela de TV Celso Russomano trouxe 1,5 milhão de votos para o PRB e levou quatro colegas a reboque para Brasília, incluindo o cantor Sérgio Reis.
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Ou seja, o voto em um candidato pode eleger outros, por vezes desconhecidos ou aventureiros.
Segundo cálculo da Mesa da Câmara publicado no site da Casa em outubro de 2014 (e substituído na terça-feira por um texto menos constrangedor aos políticos, ressaltando a legalidade do regime proporcional de eleição), apenas 36 deputados federais atingiram por conta própria o quociente necessário para ocupar uma cadeira no parlamento — destes, 11 são parentes de políticos tradicionais. Os 93% restantes dependeram dos votos de colegas para garantir vaga. No Rio Grande do Sul, nenhum alcançou o patamar mínimo sozinho. Uma das razões é que, para empilhar votos, os partidos lançam um grande número de competidores (328 no Estado) e pulverizam os eleitores. Isso traz outro desafio: o número elevado de concorrentes reduz o tempo e a qualidade do debate eleitoral.
— Com tanto candidato, o tempo de propaganda na TV vira moeda de troca e leva a coligações oportunistas entre partidos para ampliá-lo — avalia o cientista político Rubem Barboza.
Ou seja, para sobreviver na política hoje, muitos optam por chamar atenção a qualquer custo. Nem que seja por meio de homenagens à ditadura ou chuva de papel picado.
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ENTREVISTA
“O sistema político brasileiro está falido”, diz cientista política e historiadora
O desempenho dos deputados no domingo passado, na visão da cientista política Lucia Hippolito, ilustra a necessidade de mudanças no processo eleitoral.
Como a senhora avalia o comportamento dos deputados na sessão do impeachment?
Foi um espetáculo lamentável. A qualidade da nossa Câmara é muito baixa. Parecia até apuração de desfile de escola de samba. Pelo meu trabalho, estou acostumada a lidar com os deputados. Mesmo assim, me surpreendi. Parecia uma alegria aquilo tudo, enquanto na verdade é um momento extremamente sério. Tirar um presidente é algo muito sério, e o momento tinha de ser de sobriedade. Falta seriedade.
A senhora diz isso sem entrar no mérito da votação?
Sim, sem entrar no mérito do resultado. O problema é a forma como os deputados se dirigiam ao microfone. Deveriam ter a grandeza de perceber que estão contribuindo para tirar um presidente, o que é algo sempre traumático em uma democracia. Por isso, precisa de dois terços dos votos, por isso é tão difícil. Não estou discutindo se Dilma cometeu crime ou não, até porque quem vai julgar isso é o Senado.
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O que explica a baixa qualidade do parlamento?
O sistema político brasileiro está falido. Isso acontece em vários países, nenhum sistema é bom o tempo todo. Tem uma hora em que o sistema para de reproduzir as virtudes e passa a reproduzir só os defeitos. Chegamos a esse ponto. Em 2010, só 39 deputados foram eleitos com os próprios votos. Agora, foram 36. Ou seja, sabemos em quem votamos, mas não quem elegemos. O problema é saber se os próprios deputados vão aceitar alterar um sistema que os beneficia. Acredito que só haverá mudança quando a crise for grande a ponto de torná-la obrigatória.