A primeira imagem de Eu, Daniel Blake é uma tela escura. Não vemos nada, apenas ouvimos um homem responder um questionário padrão para saber se será considerado apto a receber o chamado Auxílio Financeiro ao Trabalhador. “O senhor consegue erguer o braço direito até a altura do bolso da camisa?”, pergunta a atendente do serviço que, saberemos em seguida, foi terceirizado pelo governo. “E o esquerdo?” “O senhor consegue pôr um chapéu na cabeça?” “E apertar um botão?” As perguntas se sucedem, e a paciência do interrogado
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se esvai. “Já respondi tudo isso naquele formulário de 52 páginas”, ele diz, irritado. ¿Tive um ataque cardíaco. Meus dedos estão bem. Você não vai perguntar sobre o meu coração?”
Sua situação é tão familiar a qualquer um que vive em qualquer país do
Ocidente que nem precisamos vê-lo para entendê-lo – o que explica a opção
do diretor, Ken Loach, por iniciar a projeção sem mostrar o rosto de seu protagonista. Daniel Blake está prestes a ser engolido por um sistema que,
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mais do que a saúde do contribuinte, está preocupado com o ganho
financeiro de quem o gerencia.
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Eu, Daniel Blake chega nesta quinta-feira ao circuito brasileiro chancelado pela Palma de Ouro em Cannes, o maior festival de cinema do mundo. Trata-se de um filme comovente, que só carrega uma aura de controvérsia porque venceu uma das mais valorizadas edições recentes do evento, superando títulos queridos da crítica internacional como o brasileiro Aquarius, o francês Elle e
o alemão Toni Erdmann, onipresentes nas listas de melhores longas de 2016
(este último ainda sem estreia marcada no Brasil).
Interpretado por Dave Johns, Blake é um carpinteiro de 59 anos vivendo e trabalhando na fria cidade industrial de Newcastle, norte da Inglaterra. Ou melhor, impedido de trabalhar desde que sofreu um infarto. E, além disso,
como veremos alguns minutos após o citado diálogo inicial, impossibilitado de receber o seguro social enquanto se recupera, conforme decisão tomada com base no tal questionário padrão.
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Sua jornada, a partir daí, inclui apelos, recursos e vários momentos de humilhação. Em meio a esse desgastante processo, ele se vê tocado pela
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história de uma estranha recém-chegada de Londres (Hayley Squires) que, desempregada, tem dificuldades para criar os dois filhos (Briana Shann e
Dylan McKiernan). Sabemos nada de seu passado – e mesmo da vida pregressa de Blake, exceto pelo fato de que ele cuidou de sua companheira até que ela morresse, anos atrás. Trata-se de outro acerto de Loach: privilegiando as informações que dão pistas sobre a personalidade dos personagens, e não atos passados que no fundo seriam irrelevantes para a trama, o realizador evita julgamentos e, consequentemente, linchamentos morais típicos da era de intolerância em que o mundo mergulhou.
Eu, Daniel Blake é um filme absolutamente sintonizado com seu tempo.
E, para os espectadores de países como o Brasil, que discute uma ampla reforma da Previdência, uma peça de reflexão que transcende o cinema e promove um debate mais do que pertinente neste momento que é, ao mesmo tempo, de automação dos serviços e triunfo do conservadorismo.
Uma questão levantada desde Cannes é o fato de Loach, o veterano cineasta das causas sociais envolvendo as classes operárias britânicas (ainda que dedicado a algumas comédias nos últimos anos), repetir ética e esteticamente um discurso que vem fazendo desde Kes (1969). A verdade é que o novo longa guarda semelhanças com inúmeras histórias de pessoas fatigadas por certas engrenagens, do clássico brasileiro O homem que virou suco (1980), de
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João Batista de Andrade, ao pouco visto mas muito eficiente Um episódio
na vida de um catador de ferro-velho (2013), do bósnio Danis Tanovic –
este especialmente parecido em sua temática com Eu, Daniel Blake.
É a atualidade do filme, a despeito disso, que faz a diferença.
Sem qualquer tipo de chantagem emocional, Loach consegue fazer os espectadores das mais diversas origens e das mais variadas castas se identificarem com a história de seu herói improvável. Faça o teste: vá ao cinema e tente não se emocionar com Daniel Blake. Vai ser difícil.