Os protestos de junho de 2013 fizeram mais do que parar o país e lançar luz a debates como a tarifa zero no transporte público. Ao vocalizar uma insatisfação generalizada com serviços públicos e gastos para a Copa do Mundo, os atos marcaram o reencontro do Brasil com as ruas, fazendo lembrar outras mobilizações de massa como a campanha Diretas Já, em 1983, e os caras-pintadas, de 1993. As passeatas que cobravam atendimentos “padrão Fifa” foram sucedidas por um período de mudanças políticas no país. Transformações que junho de 2013 pode ajudar a explicar.
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Originalmente, os protestos surgem da insatisfação com o reajuste de R$ 0,20 na tarifa dos ônibus em São Paulo. Após alguns atos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL) e que terminaram com forte repressão policial, mais pessoas se sensibilizam e as ruas passam a ganhar a adesão de outros grupos. Aos cartazes contra o aumento da passagem, somaram-se diferentes pautas, como críticas ao Congresso, à corrupção, aos serviços públicos e aos gastos com a Copa.
O cientista político e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Julian Borba, considera que os atos de junho têm um caráter singular por surgirem em um momento sem grandes crises econômicas, portanto “pouco propício” para manifestações. Segundo ele, é comum que essas mobilizações ocorram em épocas de instabilidade financeira ou divisão social, mas essas condições não existiam quando surgiram os protestos de 2013. Embora houvesse sinais de possível piora na economia, segundo ele havia certa estabilidade até mesmo na política, à época sem grandes escândalos de corrupção.
— O que havia era que o país se preparava para receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o que estava gerando investimentos muito altos por parte do Estado brasileiro em obras, e isso estava gerando certa insatisfação — pontua.
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Protestos estão ligados ao bolsonarismo?
Os protestos de 2013 ao longo do tempo passaram a carregar a fama de terem dado origem a parte das mudanças políticas do país ocorridas nos anos seguintes. Incluem-se aí o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, o discurso antipolítica reforçado com a Operação Lava-Jato e a ascensão da extrema direita, representada pela vitória do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2018.
O professor da UFSC afirma que há relação entre os momentos políticos, mas ressalta que não é possível explicar o bolsonarismo apenas pelos protestos de 2013. Segundo ele, influenciaram no processo também grupos com maior conservadorismo social, à direita, que passaram a ocupar as ruas nos anos seguintes, em 2014 e 2015, com pautas como o impeachment do governo petista. É o caso, por exemplo, de grupos como o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL) — cujo nome, inclusive, faz alusão ao Movimento Passe Livre (MPL), protagonista das convocações de protestos em junho de 2013.
— Esses grupos pós-2013 passam a ocupar as ruas, essa é a grande surpresa. Cada vez com mais intensidade, obtendo mais base popular, o que é potencializado depois por um grande escândalo de corrupção que foi a Lava-Jato, e por profunda crise econômica pós-2015, o que vai culminar no impeachment. As coisas não estão dissociadas, mas são eventos históricos que têm, cada um, a sua autonomia — explica Borba.
Segundo o cientista político, a agenda que foi sendo defendida nos anos seguintes, com rejeição da classe política, ideias econômicas mais liberais e o conservadorismo ajudaram no fortalecimento da direita e surgimento do fenômeno Bolsonaro.
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— Todo esse contexto forma uma situação propícia para que um outsider surja e diga: “Olha, não faço parte de nada disso, vou colocar ordem nesta casa” — afirma.
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“Narrativa torta que habita no Brasil”, diz professor

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do livro A Razão dos Centavos, Roberto Andrés, refuta a relação entre os atos de 2013 e o bolsonarismo. Considera uma tese só defendida no Brasil, embora nesse período a extrema direita tenha ganhado espaço também em outros países.
— Ninguém nos Estados Unidos diz que o movimento Occupy Wall Street foi responsável pela vitória do Trump. É uma narrativa torta que habita no Brasil — analisa.
Segundo ele, na primeira metade da década de 2010 houve uma “crise de hegemonia”, uma instabilidade política que desencadeou manifestações também em outros países. Na segunda metade, com os problemas ainda sem solução, é que teriam surgido os políticos autoritários de extrema direita.
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— São duas formas diferentes de tentar resolver o mesmo problema — avalia.
O professor defende que pós-junho de 2013 ainda houve manifestações de viés mais progressista, como ocupações por moradias, “rolezinhos” e greves. É com a ocupação das ruas por grupos diferentes após a eleição de 2014 que teriam ganhado força as mudanças políticas e a ascensão da direita dos últimos anos.
O ponto de inflexão para isso, na leitura de Andrés, seriam fatores como a rejeição à esquerda e a acirrada eleição de 2014. Essa disputa, segundo ele, foi marcada por ataques a novas lideranças como Marina Silva, que havia ganhado intenção de votos após os protestos e a insatisfação de 2013.
— A partir daí se instalou uma situação mais conflagrada de esquerda e direita, e isso abre espaço para que novos atores ocupassem as ruas, usando signos parecidos [com os de junho de 2013] — explica Andrés.
O professor explica que momentos históricos como junho de 2013 chacoalham as relações de forças, exigindo que o sistema político traga respostas.
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— Não dá para que os agentes políticos fiquem culpando aqueles eventos. Eles acontecem ao longo da história. Cabe aos atores do sistema político responder a esse contexto. Hoje, no Brasil, a gente transforma aquele momento de 2013 em um bode expiatório, responsabilizando-o por tudo que veio depois. Mas o sistema político poderia ter respondido de forma diferente — opina Andrés.

As heranças de junho de 2013
Entre as heranças deixadas pelos protestos de junho de 2013 apontadas pelos especialistas está o fato de que as ruas passaram a não ser mais território exclusivo da esquerda.
Embora nem tudo o que ocorreu na última década tenha relação direta com os atos de 2013, o cientista político da UFSC afirma que aquelas mobilizações mostram que os efeitos dessas mobilizações podem ser duradouros.
— As consequências de ciclos de protesto, como a gente tenta reconstruir em termos históricos os da última década, são muitas vezes como um tsunami. Tem o local em que as placas se descolam, e aquela onda vai andando por milhares e milhares de quilômetros. Muitas vezes o efeito desse ciclo vai ser sentido por gerações — avalia.
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O professor da UFMG Roberto Andrés considera o movimento importante por ter produzido um salto no debate sobre transporte público no Brasil. Tarifas foram reduzidas em mais de 100 cidades na época dos protestos e, nos anos seguintes, pautas como a tarifa zero ganharam adeptos. Hoje, já é adotada por 74 cidades brasileiras.
Sobre os efeitos políticos dos protestos, o professor considera que os atos de 2013 deixaram como legado à população a prova de que a mobilização pode gerar muitos resultados — o que nos anos seguintes inspirou novas lutas por moradia e direitos das mulheres, por exemplo.
Além disso, os protestos também simbolizaram de certa forma o fim da “República do Real”, período de predominância de PT e PSDB no poder, sempre com adesão do Centrão.
— Esse arranjo se erodiu, a sociedade adotou mais posições radicais, abriu-se um processo de mais instabilidade na política, que nosso sistema não soube responder — analisa.
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