– Pai, por que você buzina toda a hora? Perguntou o menino de sete anos, no banco traseiro do carro.
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– Para corrigir esses malucos que vivem fazendo m#$%@ no trânsito – respondeu Gilberto Meirelles, 45 anos, para em seguida ouvir do filho:
– Achei que era para ajudar os outros motoristas.
Foi um belo puxão de orelhas. O representante comercial não admitia, mas dirigia irritado e repreendia os outros como se fosse o único a entender as leis de trânsito. Ultrapassagem perigosa, motociclista passando bem próximo do carro, pedestre andando devagar na faixa de segurança. Tudo era motivo para bravezas.
Meirelles lembra quando, por causa desse comportamento, discutia com a esposa que reclamava ser estressante andar com ele. Assim como quando o colega de trabalho que confessou aos amigos preferir abrir mão da carona e seguir de ônibus, do que ir com Gilberto e vê-lo agressivo.
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– Muita gente vai se identificar: o trânsito mexe comigo, com meu humor, fico alterado. Atualmente trabalho mais em casa e quando necessário uso aplicativo – diz ele.
Certas vezes comportamentos assim chegam ao extremo. Há dez dias, a Polícia Civil de Florianópolis esclareceu a tentativa de homicídio contra o pediatra Cláudio Santos Pacheco, 58 anos, da UPA Sul. Em 5 de janeiro, uma briga no trânsito teria levado a uma perseguição.
O médico foi espancado, arrastado para trás de um tapume e recebeu um golpe com pedra no rosto. Para o delegado Ronaldo Moretto, os agressores acharam que tinham matado o médico, que foi hospitalizado e segue internado.
Outras vezes, a hostilidade vira barbáries, como ocorreu no domingo, dia 26, em Porto Alegre. Um homem matou a tiros três pessoas por desavença no trânsito.
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– Vivemos uma epidemia de violência no trânsito, uma questão cultural no Brasil, o país mais ansioso do mundo, e que reflete o estresse e outros transtornos vivenciados pela população – diz o psiquiatra Alcides Trentin Júnior, médico da Associação Brasileira da Medicina de Tráfego (Abramet).
Para ele, alguns indivíduos fazem nas ruas o que – erroneamente – repetem em um estádio de futebol: xingam o adversário, ofendem a mãe do juiz, gritam palavrões sem perceber que ao lado deles têm crianças ou simplesmente outra pessoa que está ali de forma pacífica apenas para ver uma partida de futebol.
O responsável pela coordenadoria de Saúde Mental da Abramet cita os números da Organização das Nações Unidas (ONU) para ilustrar sobre a gravidade que tomou conta das ruas e estradas no país: 10% dos brasileiros sofrem de ansiedade e 6% da população têm depressão. A cada ano, cerca de 38 mil brasileiros e brasileiras morrem em acidentes. Para o especialista em Medicina do Tráfego, há pessoas que dentro de um carro se sentem no direito de impedir o direito de ir e vir do outro. Quando presos em um engarrafamento parecem estar perdendo tempo e dinheiro, com a falsa sensação de estar protegidos dentro de um veículo rápido e veloz.
Isso tudo faz com que, muitas vezes, uma pessoa que normalmente não se mostra agressiva em outros ambientes, como no trabalho ou passeando em um parque, tenha atitudes desmedidas – diz Júnior.
Mudar esses comportamentos é uma das metas da Abramet, que atua diretamente com profissionais do setor.
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– Precisamos seguir o que fazem os países de primeiro mundo: punir com rigor quem infringe as leis de trânsito. Temos no Brasil políticas de trânsito, como educação nas escolas. Porém, é necessário punir, agir com de forma coercitiva – comenta.
“Pensei em procurar treinamentos para habilitados”, afirma motorista que se diz “traumatizada” do trânsito
– Não sei dizer em que momento travei. Brinco que devo ter esgotado meu anjo da guarda! De repente, comecei a ficar com medo da velocidade, dos outros carros, da imprudência dos motoristas. Hoje nem o morro da Lagoa da Conceição subo mais – diz a jornalista Suzete Antunes, que apesar de não ter deixado totalmente de dirigir, usa cada vez menos o carro próprio.
Suzete ainda dirige, mas só em perfeitas condições de temperatura e de pressão: não trafega na BR-101, não dirige com chuva e nem à noite.
– O que me apavora não é exatamente o congestionamento, até pelo contrário, o trânsito menos intenso me deixa mais tranquila. São outros fatores – explica a jornalista.
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Suzete não teve episódio trágico, como o envolvimento em acidentes. Dirige desde os 18 anos e recorda que com o fusca Alfredo, nos anos 1980, fez muitas viagens entre Florianópolis e Porto Alegre nas mais diversas condições: às vezes saía do jornal na madruga e, sob chuva intensa, encarava a rodovia.
– Atravessar a ponte em dias e noites de vento sul naquele besourinho era um desafio. Tinha que se lembrar de abrir um pouco as janelas, e mesmo assim se não segurasse firme o volante ele trocava de pista – lembra.
Recordações à parte, Suzete reconhece certos limites. Conta ter pensado em procurar treinamentos para habilitados. Os aplicativos facilitaram muito. Às vezes sai até mais barato do que ir de carro, além de não se incomodar com estacionamento. Também usa o ônibus executivo, o amarelinho, que se fosse mais frequente e um pouco mais barato seria uma solução para deixar o carro de vez. Explica ter lido sobre comunidades que têm carros compartilhados. Nelas, as pessoas organizam as agendas e utilizam os mesmos veículos dividindo custos e incentivando as caronas.
– Além de ajudar “traumatizados” como eu, seria uma forma de diminuir o número de monstrengos de mais de tonelada circulando – pontua.
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“Um medo sem explicação”, diz educadora
Travar também é um verbo que, em se tratando de trânsito, a aposentada Marilene Vieira, 58 anos, conhece. A educadora que passou a vida dando aulas deixou de dirigir há seis anos. Ela ainda sua frio ao lembrar-se das vezes em que, com a sensação que iria morrer dentro do carro numa longa fila, achava um lugar para estacionar em qualquer lugar. Por várias vezes batia a porta com as chaves dentro:
– Dava um desespero, um medo sem explicação. Acelerei até a aposentadoria para não mais ter que viver aquele inferno – diz.
A situação ficou tão grave que até a fila de estacionamento no supermercado virou problema.
– Descobri que estava com síndrome do pânico. Tomo meus ansiolíticos e está tudo bem, mas não volto a dirigir jamais – finaliza Marilene.
“Não sinta vergonha”, recomenda psiquiatra
A psiquiatra Deisy Mendes Porto, presidente da Associação Catarinense de Psiquiatria, explica que transtornos mentais têm causa multifatorial e possuem componentes variados, como genético, individual de personalidade, ambientais. O estresse no trânsito, por exemplo, é associado a transtorno mental ambiental.
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O estresse mantido, persistente e elevado pode levar a um problema sério. Mas a forma como a pessoa lida com a situação fará a diferença para que ela mantenha a saúde mental. A psiquiatra lembra que causado pelo trânsito ou não o estresse é inevitável em nossas vidas. Por isso, é importante que a pessoa ao perceber que está impactada negativamente, não tenha vergonha de buscar ajuda especializada.
– Transtornos de ansiedade, pânico e depressão são condições que possuem tratamento, sendo possível recuperar a qualidade de vida. A psiquiatria está aí para ajudar as pessoas – diz a especialista.