— Quantas vezes devo perdoar um semelhante que pecar contra mim? Jesus disse que deve ser 70 vezes sete, que dá 490 vezes. Isso significa sempre.
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Usando estas palavras da Bíblia como guia, Juvenal Motta, 70 anos, encontra motivação para seguir em frente. Em todos os finais de semana – assim como faz há anos –, ele sai de casa, no bairro Boa Vista, para ir à igreja em busca de conforto. Antigamente, o banco ao seu lado era ocupado pelo filho mais velho, Amauri. Mas, há quase oito anos a vaga deu lugar ao sentimento de ausência.
Assim como a angústia de Juvenal, outras 43 famílias enfrentam o mesmo dilema desde 2008: lidar com a morte violenta de um parente, provocada pelo crime de latrocínio (roubo seguido de morte). Estes casos também causam grande repercussão na sociedade, já as pessoas se identificam com as vítimas por possuírem vidas semelhantes.
Ainda que o número não seja tão expressivo quanto o de homicídios registrados, por exemplo, o trauma vivenciado nestes casos causa uma ferida difícil de cicatrizar. A equipe de reportagem procurou diversas famílias para falar sobre essa perda. Grande parte delas se mudou na tentativa de recomeçar a vida; outras não puderam contar suas histórias por causa da saudade. Somente duas famílias – ainda que abaladas – conseguiram descrever a batalha para recomeçar.
O filho do senhor religioso que inicia este texto foi morto durante um latrocínio em 12 de outubro de 2010. Juvenal conta que naquele dia, a rotina de Amauri seguia normalmente, como em outros sábados. Depois de ir à igreja, ele foi à panificadora para fazer cachorro-quente para a família. Quando já estava no caixa finalizando a compra, um homem armado entrou no comércio e ordenou que todos colocassem a mão na cabeça.
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Amauri precisou colocar o pacote que segurava em cima do balcão para obedecer à ordem. O assaltante espantou-se com a atitude e atirou contra ele, atingindo-o na altura do coração. O neto de Juvenal, filho de Amauri – na época com dez anos – estava no estabelecimento e presenciou toda a cena. Desde então, a família da vítima precisou aprender a lidar com a saudade, na tentativa de conviver com o luto.
– Nós éramos muito chegados. Ele não comprava uma bicicleta, por exemplo, sem conversar comigo. Todo sábado à tarde a gente ficava junto, tomando chimarrão e conversando. No dia que ele morreu também foi assim… – recorda o senhor.
A morte de um familiar ou de um amigo é considerada o maior fator estressor do ser humano. Se a perda ocorre de forma precoce e acompanhada de violência, as emoções vivenciadas pelos que ficam se manifestam de forma ainda mais intensa. Essas perdas abalam a saúde física e mental, impactando na qualidade de vida. Segundo a psicóloga Cleonice de Fátima Andrade, o trauma vivenciado neste tipo de violência costuma causar feridas e sofrimentos que podem ser carregador durante a vida toda.
Mesmo depois de quase oito anos, é difícil relembrar a noite em que o telefone tocou bem tarde, com a notícia de que Amauri fora assassinado. Com a voz trêmula, a mãe da vítima, Elzira Motta, 69 anos, tenta exemplificar o sofrimento que a família passou, por uma situação vivenciada com o neto que estava junto no dia do crime.
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— Depois do crime, de vez em quando eu via o meu neto espiando, bem ansioso, pela janela de casa. Ele demorou alguns dias para me contar o que estava acontecendo: o menino aguardava que um homem de mochila, igual ao bandido, entrasse no quintal e viesse buscá-lo — diz a mãe de Amauri.
Fé e perdão para superar morte
Para tentar conseguir lidar com a perda, a família de Amauri se apegou na fé. A religião, que antes do crime já era muito presente no cotidiano, se transformou em uma espécie de “tratamento” para conseguir superar os sentimentos de impotência, culpa e revolta. Além disso, quase todos passaram por assistência psicológica.
— Muitos buscam conforto na espiritualidade porque se apoiam na crença de um mundo mais justo, respeitoso e ausente de sofrimento no terreno espiritual — explica Cleonice.
O versículo da Bíblia citado no início da reportagem é relembrado por Juvenal diversas vezes ao dia, desde que o filho foi assassinado. A citação o ajudou a conceder o perdão a Ramon Cortes de Lima, condenado a 24 anos de prisão pelo latrocínio. No momento em que conseguiu “desculpá-lo”, a superação da morte se tornou menos dolorosa. Hoje, o maior desejo dele é que o autor cumpra a pena, e quando ficar livre do sistema prisional, volte à sociedade “recuperado, para que não faça o mal a mais nenhuma família”.
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A psicóloga ressalta que cada pessoa tem uma maneira diferente de superar a perda, assim como o tempo despendido nessa tarefa também é distinto. Tudo irá depender dos recursos internos, da estrutura emocional e dos limites de frustrações de cada indivíduo. Ela menciona a condenação dos responsáveis pelo crime como fator que pode ajudar a produzir conforto em quem sofreu a perda.
— Muitos se agarram em causas importantes para conseguir justiça aos culpados. É uma das estratégias utilizadas pelos parentes para lidar com a perda — explica.
No caso de Juvenal, que conseguiu perdoar o agressor, Cleonice também explica que o perdão não é esquecer o que passou ou a aceitação da injustiça. O perdão exprime o sentimento de que foi possível colocar um ponto final na história e recomeçar um novo ciclo – onde o agressor permanecerá onde está, enquanto a pessoa que vivenciou o luto pela morte consegue seguir em frente.
— A pessoa que não perdoa continua ligada de alguma forma ao agressor, a cabeça continua revivendo a tragédia, e essa ruminação provoca sentimentos intensos, podendo prejudicar severamente a vida do indivíduo — completa.
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Investigação dos crimes
Todo roubo ocorrido na cidade pode ser um possível latrocínio. Dados do Sistema Integrado de Segurança Pública demonstram que, em 2017, Joinville registrou 2.787 roubos, incluindo assaltos a veículos. O índice de casos de latrocínio no ano passado foi de nove registros – cinco consumados e quatro tentativas. Destes, oito já estão com inquérito policial concluído e autoria definida para o crime – representando uma taxa de resolubilidade de 90%.
– Na maioria dos casos de latrocínio, o indivíduo que vai praticar o crime não vai com a intenção de matar. Ele vai para cometer o roubo e às vezes, por a vítima reagir, estar nervosa ou ele mesmo estar nervoso na situação, acaba cometendo o crime, que passa de um roubo qualificado para um latrocínio – explica o delegado Rodrigo Aquino, da Divisão de Investigação Criminal (DIC).
À frente das investigações dos latrocínios desde o início de 2017, Aquino observa que grande parte destes crimes ocorre em residências ou em estabelecimentos comerciais. Com menor frequência, são observados casos que acontecem como consequência de roubo de veículos ou a pessoas. Também não há um padrão de perfil observados nas vítimas, como a idade ou de classe econômica.
Para tentar evitar a cicatriz deixada na família por um latrocínio, é essencial não reagir e procurar manter a calma em casos de assalto. O delegado recomenda também que a vítima tente observar características marcantes do assaltante, como cor de cabelo, roupas e até tatuagens. Todas essas informações auxiliam a polícia na investigação dos crimes.
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O inquérito policial para investigação dos latrocínios é instaurado no mesmo dia em que o crime acontece, já que eles causam grande repercussão e empatia nas pessoas, que se identificam com as vítimas. O prazo para conclusão é de um mês, mas, dependendo do curso das apurações, pode ser prorrogado. Nos casos do ano passado, a finalização das investigações ocorreu entre 30 e 60 dias.
A vida depois da perda
Como um nó invisível, a presença de Antônio Possenti representava a união da família. Em todas as datas comemorativas, como Natal e Ano-novo, a mesa se enchia, com a mulher, os sete filhos e ele em volta. A rotina se repetia ano após ano até que a realidade da família sofreu um grande abalo. Em março de 2013, Antônio – na época com 76 anos – foi morto com um tiro no peito na agropecuária da qual era proprietário.
— Desde lá, a nossa vida mudou muito. A gente nem se reúne mais. Tentamos fazer uma vez o Natal, mas cadê o pai? Um começa a chorar no canto, outro começa a chorar do outro… Fica aquela tristeza, não tem mais sentido — lamenta Santo Possenti, 52 anos, filho da vítima.
O senhor esteve à frente do negócio da família por 36 anos. Quando chegou do Oeste para morar em Joinville, inaugurou o comércio pensando em dar estudo e boas condições aos filhos. Passados cinco anos do crime, Santo ainda busca se conformar com o assassinato e manter viva as lembranças ao lado do pai.
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— Ele sempre sentava ali na frente da loja, com a mãe junto às vezes. Conversava com um, com outro, fazia amigos. Um exemplo muito correto e honesto para todas as pessoas, e agora guardamos ele vivo no coração — conta.
Toda pessoa que enfrenta a morte de um ente querido enfrenta o luto. O processo é particular e cada pessoa tem um tempo. Segundo Cleonice, existem cinco estágios que os enlutados enfrentam: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação (veja mais informações no quadro abaixo). Quando o indivíduo não atinge o último estágio, a situação pode se tornar patológica desencadeando transtornos psicológicos, necessitando de intervenções psicológicas e, em alguns casos, medicamentos.
Além disso, quando o processo de luto se torna mais complexo, a dinâmica da família pode ser afetada – seja causando atritos ou afastando-os. Para ajudar a superar a perda, a psicologia utiliza técnicas não medicamentosas, como: intervenção na crise, suporte grupal, terapia de família e terapia individual. Na abordagem da terapia cognitivo-comportamental, por exemplo, o foco é na forma como o indivíduo percebe o mundo, o futuro e a si mesmo.
— É importante que o paciente se sinta acolhido para que um vínculo de empatia seja estabelecido. Quanto mais o enlutado conseguir expressar suas frustrações e sofrimento, mais rápido se recupera — afirma.
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A psicóloga também ressalta que as pessoas que convivem com os enlutados podem ajudar, oferecendo companhia e ouvindo-as. Entretanto, se o processo do luto estiver demorando para se encerrar, o ideal é convencê-las a procurar um profissional da saúde.
ETAPAS DO LUTO:
– Negação: período de isolamento, uma recusa de enfrentar a realidade.
Pensamento: “Isso não pode estar acontecendo”.
– Raiva: momento da exteriorização da revolta que está sentindo.
Pensamento: “Por que eu? Não é justo”.
– Barganha: tentativa de negociar ou adiar os temores. Momento em que as pessoas se direcionam a Deus e procuram ajuda com profissionais da saúde.
Pensamento: “Me deixem viver apenas até meus filhos crescerem. ”
– Depressão: momento em que as pessoas ficam quietas, refletindo sobre a vida dali para frente.
Pensamento: “Estou tão triste. Por que me preocupar com qualquer coisa? Nada mais faz sentido”.
– Aceitação: momento que consegue expressar melhor seus sentimentos, as frustrações e dificuldades.
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Pensamento: “Tudo vai acabar bem”.