A morte da cantora e compositora Marília Mendonça no dia 5 de novembro deixou o Brasil estarrecido – sentimento comum quando se perde uma artista tão jovem e tão bem-sucedida, que parecia estar dando apenas os primeiros passos em uma carreira que tinha tudo para durar décadas. Mas não foram apenas os fãs da música sertaneja que lamentaram: Marília era maior do que o estilo musical no qual se consagrou; e isso porque sua carreira foi marcada por quebras de barreiras e de padrões.
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Marília Mendonça era mulher em um estilo tradicionalmente dominado por homens. Começou jovem, muito jovem, e deu voz ao sentimento das mulheres reais: mulheres que são traídas; que traem; que bebem; as amantes de homens comprometidos; as prostitutas; as solteiras convictas; as mães. Marília foi mãe; uma mãe pé no chão, tentando conciliar carreira e os cuidados com o filho. Em uma indústria onde corpos esbeltos e sarados são o padrão, sofreu, além do machismo, gordofobia – e enfrentou.
A cantora é um símbolo da nova relação entre público e artista: cada vez mais, os fãs querem ver celebridades que não tenham vergonha de mostrar que são pessoas reais, de carne e osso – o clássico “gente como a gente”. É preciso ver no ídolo qualidades e defeitos; pois só assim é possível se identificar com ele. E mais: para que essa identificação ocorra, é preciso que esses ídolos sejam tão diversos quanto seu público.
– Somos humanos, humanos são mamíferos, e mamíferos se reconhecem pelo vínculo – explica a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – Vínculo é algo que se constrói nas relações, e é nas relações que reconhecemos, identificamos e diferenciamos a nós e aos outros. Acredito que todos nós já tivemos ao menos uma experiência de sentir a dor de não ser visto, ou ouvido; de não ser reconhecido em uma ideia ou ser invalidado em um comportamento. Como somos seres vinculares, sentir-se excluído pode causar um grande sofrimento. Quando o outro me olha e me dá voz, me percebe e me reconhece, sei que existo e que o que eu falo ou demonstro tem valor; e, mais profundamente, reconheço que eu tenho valor.
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Marília Mendonça, é claro, não foi a única a construir essa ponte com uma parcela do público que, por meio dela, finalmente se viu ganhando espaço na mídia. O cenário artístico do Brasil é repleto de exemplos. O rapper Emicida e a cantora Iza se tornaram vozes na luta antirracista. A humorista Pequena Lô, que nasceu com membros mais curtos devido a uma síndrome associada à displasia óssea, chamou atenção para pessoas que, como ela, têm alguma condição rara ou dificuldades de locomoção. Pabllo Vittar fez a família brasileira encarar, de uma só vez, diversas pautas do movimento LGBTQIA+; da fluidez de gênero à luta contra a homofobia, a transfobia, o preconceito contra as drag queens.
– As celebridades podem dar voz e visibilidade aos que não são vistos nem ouvidos – prossegue a psicóloga Graziela. – Quando uma parte de nós se reconhece em uma figura pública, podemos nos autorizar a ser quem verdadeiramente sentimos que somos. Entendemos que não estamos sós, e ganhamos a possibilidade de um novo lugar social. Por isso muitas celebridades se tornam inspiração para outras pessoas também se aventurarem em suas vidas; seja nos esportes, na arte, na vida acadêmica, no mundo dos negócios. E por isso é tão importante que as celebridades sejam várias e diversas; porque também somos vários e diversos, seja em sociedade ou em nossos universos particulares.
– Pessoas que chegam a esse espaço de visibilidade oferecem às que as olham, ao outro lado, um campo de possibilidades: é como se as pessoas que fazem parte do público pensassem “eu também posso estar lá” – complementa a antropóloga Juliana Cavilha, da Estácio Florianópolis. – Elas representam singularidades, personagens que circulam no mundo social. Marília Mendonça, Pabllo Vittar, são pessoas que representam demandas do cotidiano de muita gente, faltas que às vezes existem na vida social do público. Elas representam possíveis projetos de vida, ampliam o campo de possibilidades que os fãs têm de atuar na sua vida social.
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A artista MC Versa, de Florianópolis, é um exemplo disso: ela conta que nunca pensou em fazer rap antes de ver uma mulher nesse universo. MC, compositora e produtora, Versa cita entre suas inspirações artistas como Palavra Feminina, Rap Plus Size, Cris Snj, Negra Li, Kamila CDD, Brisa Flow, MC Clandestina, Ju Sofer, Dre Araújo, Babi Oliver. Ela diz que, antes de entrar em contato com outras cantoras e compositoras mulheres, via o rap como um lugar onde ela não podia estar, um “não-lugar”.
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– A representatividade faz com que a gente enxergue novas possibilidades para viver – afirma. – É importante a pessoa preta, a travesti, a pessoa LGBTQIA+, ter referências de algo que antes parecia inalcançável para ela. “Olha, você não precisa ser homem, não precisa ser branco, para fazer isso ou aquilo.” Se enxergar nos espaços que a gente almeja é muito importante. É muito difícil conseguir certas coisas quando você cresce sendo podado, sendo inviabilizado – e olha que eu estou falando isso do lugar de uma mulher branca! E também é uma questão de construção de autoestima. É muito bom se enxergar tendo voz.

Arte como ferramenta de mudança
Além de impactar o debate público por meio de sua própria existência e de seu trabalho, alguns artistas vão além – e se posicionam de fato quanto às pautas com as quais se identificam; apoiando causas, falando a respeito em entrevistas, nas redes sociais. Quando isso acontece, um tema que muitas vezes era assunto apenas dentro de um nicho específico ganha espaço e palco – e, muitas vezes, vai além do público que acompanha diretamente o artista em questão.
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– Celebridades são pessoas que constroem uma identidade pública a partir do uso da mídia; e o que aparece na mídia existe, o que não aparece, “não existe” – comenta a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – Quando alguém que tem um forte alcance na população se posiciona ou expõe uma ideia ou ponto de vista, a possibilidade dessa informação se multiplicar e tocar mais e mais pessoas é muito grande.
– Muitos são os temas que normalmente não contatamos, por estarmos sempre imersos em nossas obrigações e costumes – ela continua. – Entrar em contato com essas ideias é convidar algo que não fazia parte da nossa realidade para compor o nosso modo de ver o mundo. Pode ser uma provocação para ampliarmos nossa empatia por uma causa ou situação que até então nos era desconhecida; pode ser uma abertura para reflexões de temas aos quais, por ignorância, não dávamos importância. A partir do momento em que entramos em contato com algo novo, uma nova compreensão se forma, e podemos integrar à nossa realidade o que antes desconhecíamos. Quando alguém que tem visibilidade traz à tona assuntos que permaneciam à margem das nossas percepções, sempre se cria uma oportunidade de refletirmos e de evoluirmos, como cidadãos e como sociedade.
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A antropóloga Juliana Cavilha cita o exemplo da gordofobia:
– A gordofobia não era pauta há dez anos – aponta. – A pauta não era ser gordo, era ser magro; ou como ser magro. Ser magro era tudo o que importava. No momento em que uma cantora como a Marília [Mendonça], que não tem esse corpo magro idealizado, chega e ocupa um espaço que antes não era ocupado por alguém como ela, isso representa uma possibilidade de alcance para outras pessoas. E ela e outros artistas fizeram com que nós refletíssemos sobre o assunto e percebêssemos que a gordofobia é uma ação muito presente nas nossas relações, nas nossas trocas.
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No papel de alguém que fala como artista e como fã, MC Versa diz que acha fundamental que as celebridades se posicionem a respeito das pautas que fazem parte de suas vivências.
– Eu acho que tudo é política – afirma. – Acho que não existe “ficar em cima do muro”. Quem cala, consente; quem decide ficar em cima do muro na verdade já escolheu um lado. A arte é um reflexo do que o artista pensa e vive. Mesmo que inconscientemente, ele transmite a visão dele, as vivências dele, através da arte. E acho que, quando o artista tem visibilidade, ele tem uma responsabilidade com o seu público, de falar e despertar reflexões sobre a realidade. A arte é uma ferramenta para transformar a realidade, e, por meio dela, os artistas podem ser agentes de mudança.

Ídolos unidos contra a intolerância
Na última semana, repercutiu na internet a história do menino Bruno Nascimento, de 9 anos, que protagonizou uma polêmica entre torcedores e jogadores de futebol. Torcedor do Santos, Bruno foi ao estádio assistir a um jogo do time. O Santos foi derrotado por 2 a 0 pelo Palmeiras. E Bruno, que estava perto do campo, decidiu pedir a Jaílson, goleiro reserva do Palmeiras, a sua camiseta. Jaílson concordou, e Bruno e o pai foram vaiados e hostilizados por torcedores do Santos na saída do estádio – policiais foram acionados para conter a confusão. Bruninho chegou a gravar e publicar nas redes sociais, escondido do pai, um pedido de desculpas à torcida dos Santos.
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Foi aí que diversos ídolos do futebol deram o exemplo, manifestando-se contra a intolerância e o radicalismo no esporte. Ninguém menos que Pelé, rei do futebol e maior ídolo do Santos, publicou no Twitter uma foto em que aparece na companhia do palmeirense Vavá, ao lado de quem jogou na Copa do Mundo de 1962. “Bruninho, você não precisa pedir desculpas por ser apaixonado por futebol”, escreveu na legenda. “O nosso esporte é lindo, mas seria melhor se todos os torcedores tivessem o seu coração. Como pode ver na foto, eu também tinha um ídolo que jogava no Palmeiras, viu? Seja sempre feliz!” Neymar respondeu a publicação de Bruninho, escrevendo: “Bruninho, você pode gostar de quem você quiser! Independente do time que você torça! Abraço, menino, viva teu sonho!”
Weverton, goleiro titular do Palmeiras, gravou um vídeo para Bruninho, e presenteou o menino com uma camiseta da Seleção Brasileira, da qual faz parte. “Independente de você ser santista, você tem direito de gostar de quem você quiser, e tem o direito de torcer para quem você quiser”, afirmou o jogador na gravação. “Que você nunca deixe de ir ao estádio por conta de um ou outro que pense o contrário. Você é livre.”
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