A crise entre Brasil e Estados Unidos escalou a um novo nível nesta semana na esteira da confirmação do tarifaço e da sanção ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), enquadrado na Lei Magnitsky. O dispositivo da legislação norte-americana destinado a punir autoridades estrangeiras envolvidas em violações de direitos humanos foi utilizado para bloquear eventuais bens e contas de Moraes nos Estados Unidos. O gesto elevou de vez a tensão entre os países, em meio aos últimos dias de negociação para a não aplicação da sobretaxa de 50% sobre produtos brasileiros, que teve início confirmado a partir da próxima quarta-feira (6).
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Os novos capítulos do embate movimentaram as cinco principais faces da crise entre Brasil e EUA. Após meses de articulação, o governo de Donald Trump cedeu aos pedidos de aliados do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), como o filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP), e anunciou a sanção a Alexandre de Moraes com base na Lei Magnitsky, resultando em bloqueios financeiros ao ministro em solo americano.
O anúncio ocorreu na semana em que o ministro das Relações Exteriores e uma comitiva de oito senadores foram até o país norte-americano para tentar negociar um recuo ou adiamento no início do tarifaço, previsto para entrar em vigor no começo de agosto.
Em reação às medidas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu a soberania nacional e indicou em nota que a medida seria motivada por “brasileiros que traem a pátria em defesa dos próprios interesses”. O governo petista também já sinalizou interesse de recorrer à Justiça americana contra a punição de Trump a Moraes. Na avaliação do governo, a medida foi mais uma forma de tentar interferir diretamente na Justiça brasileira em busca de anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro das acusações de tentativa de golpe.
Veja fotos de Alexandre de Moraes
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No lado bolsonarista, o filho do ex-presidente, que durante a semana admitiu trabalhar para que a comitiva brasileira não conseguisse diálogo para negociar, comemorou a sanção a Moraes. Nas redes sociais, falou que o gesto seria um “marco histórico e um alerta” e disse ter “sensação de missão cumprida”.
A sanção a Moraes e a confirmação do tarifaço se somaram a outras medidas, como a suspensão do visto americano do ministro do STF e postagens de Donald Trump que citaram uma suposta “caça às bruxas” contra Bolsonaro que sinalizaram tentativa dos Estados Unidos de interferir na Justiça brasileira, aumentando a tensão entre os países e o discurso de defesa da soberania nacional por parte do governo Lula.
Gesto reforçou viés político do tarifaço
O novo gesto de Trump foi encarado como um reforço da motivação política das sanções contra o Brasil já anunciadas em forma de tarifaço. A professora do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Clarissa Franzoi Dri, detalha que a punição a Moraes é mais um gesto de tentativa de ingerência externa dos EUA em assuntos brasileiros e que ocorre na semana em que as autoridades brasileiras tentavam dissociar o viés econômico do político para chegar a um acordo sobre as sobretaxas de 50%.
— A negociação tentava diferenciar o aspecto político do econômico. Esse gesto está dizendo que não, que os Estados Unidos não querem desvincular. O Brasil quer separar os assuntos, e os Estados Unidos estão dizendo para não separar, estão dizendo que o interesse é político: “A gente só vai ceder nas tarifas se aceitarem nossas condições” — avalia.
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Apesar disso, ela acredita que a abordagem de Trump para tentar interferir em processos da Justiça e da soberania brasileira não deve triunfar.
— Isso torna praticamente certa a aplicação da tarifa a partir de agosto, mas não significa que nas próximas semanas essa estratégia [de tentar separar o caráter político do econômico] não pode dar certo — projeta a professora.
Tarifaço é confirmado, mas ganha quase 700 exceções
No mesmo dia em que sancionou Moraes pela Lei Magnitski (leia mais abaixo), Trump também assinou um decreto que confirmou a aplicação do tarifaço contra produtos brasileiros, definindo 6 de agosto como data de início da sobretaxa. O anúncio, porém, surpreendeu pela inclusão de quase 700 exceções, retirando diversos setores econômicos da tributação extra. A medida foi encarada como uma “desidratação” do tarifaço e trouxe alívio a segmentos econômicos brasileiros.
Entre as áreas que entraram nas exceções e escaparam do tarifaço estão as de aviação civil, com aeronaves e peças, o automotivo, também com veículos e peças, o ramo de eletrônicos, combustíveis, produtos de ferro, aço, alumínio e cobre e fertilizantes (veja lista ao lado). Já as atividades econômicas que não tiveram a mesma sorte e continuaram sujeitas à sobretaxa a partir de 6 de agosto incluem café, carne bovina, frutas, produtos têxteis, calçados e móveis.
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Na quinta-feira, após os anúncios, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, avaliou que o tarifaço com as exceções acabou sendo melhor que o esperado e representa um “melhor ponto de partida” para as negociações. O político prometeu que as negociações seguirão para tentar livrar do tarifaço também os setores não contemplados nas exceções desta semana.
— Há muita injustiça nas medidas anunciadas ontem, há correções a serem feitas. Há setores que não precisariam estar sendo afetados — afirmou.
O que escapou do tarifaço
- Setor aeronáutico (aeronaves civis, peças e motores, o que pode beneficiar a Embraer, que tem quase metade dos jatos comerciais negociados com os EUA);
- setor automotivo (veículos de passageiros, caminhões leves, peças e componentes, o que beneficia montadoras brasileiras que exportam aos EUA);
- setor de energia (combustíveis como carvão, gás natural, petróleo, querosene, óleos lubrificantes e outros, incluindo energia elétrica);
- parte do agronegócio (suco e polpa de laranja, castanha-do-brasil, madeira tropical serrada ou lascada, polpa de madeira, fios de sisal e fertilizantes; outros itens do agro como café e frutas seguem sujeitos à sobretaxa);
- mineração e metais (silício, alumina, ouro, prata, ferroníquel, além de produtos semiacabados e componentes industriais de ferro, aço e alumínio e cobre);
- eletrônicos (smartphones, antenas, aparelhos de gravação e reprodução de som e vídeo);
- bens em trânsito, que já estavam a caminho dos EUA, de uso pessoal e doações.
O que continuará no tarifaço
- Café;
- carne bovina;
- frutas;
- produtos têxteis;
- calçados;
- móveis.
Os impactos do tarifaço em SC
Os Estados Unidos são o principal mercado de exportações catarinenses, sendo responsáveis por 14,9% de todas as vendas do Estado ao mercado externo em 2024. Entre os principais itens estão produtos de madeira, motores e materiais elétricos. A participação é maior do que a registrada no comércio nacional, onde os EUA são o segundo maior consumidor, com 11% de todas as negociações brasileiras ao exterior.
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Por conta disso, a confirmação do tarifaço e as novas regras e exceções divulgadas esta semana impactaram também nos reflexos econômicos da medida à economia do Estado. Na reta final desta semana, a Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc) ainda analisava quais os setores excluídos e mantidos do tarifaço, e como isso deve refletir no Estado.
A análise inicial apontou que mesmo com as exceções o tarifaço deve atingir a maior parte dos produtos exportados por SC aos EUA.
Os produtos mais exportados de SC aos EUA
Fonte: Observatório da Fiesc, de janeiro a junho de 2025
Dos quase 700 itens incluídos nas exceções, a avaliação é de que mais de 500 se referem diretamente ao setor da aviação e outros 120 se referem a itens importantes para a economia brasileira, como petróleo, suco de laranja e minério de ferro, mas pouco relacionados aos itens produzidos em SC.
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— Isso não quer dizer que não sejam (setores) importantes para Santa Catarina porque a gente tem muitos produtores industriais que são fornecedores desses produtos exportados, então do ponto de vista de impacto indireto é uma notícia positiva — afirmou o economista-chefe da Fiesc, Pablo Bittencourt.
O maior benefício ao Estado deve vir da isenção prevista no decreto de parte dos produtos de madeira e aço, que são alvos de uma investigação (232) e podem sofrer tarifas setoriais por interesses dos EUA, mas que por enquanto ficarão isentos de sobretaxas. A diferenciação dos itens de madeira sujeitos ou não à sobretaxa deve ser feita conforme o perfil da mercadoria, a ser analisado pelos EUA. Outros produtos entre os mais exportados por SC, como motores e materiais elétricos, carnes e pescados, a princípio, seguirão sujeitos à tarifa de 50% com o início do tarifaço.
Para a entidade, entre as mercadorias que mais devem sentir os efeitos em SC são os de máquinas, equipamentos e materiais elétricos, que seguirão com o tarifaço de 50%. Cerâmica, pescados e alimentos, como mel e erva-mate, também estão entre itens que seguirão alvo do tarifaço e serão pontos de atenção.
A Fiesc divulgou também esta semana uma pesquisa feita com empresas exportadoras de SC sobre o impacto previsto com o tarifaço. O levantamento, que ouviu 16% do total de empresas catarinenses com vendas aos EUA, apontou que quase 70% delas já sentiu como consequências a redução no volume de pedidos de clientes e 53% sofreram suspensão de embarque de mercadorias. Outras 38% das empresas entrevistadas tiveram negociação para redução de preços e 17% já haviam decretado férias coletivas.
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Entre as consequências futuras previstas pelas empresas, 61% projetam a necessidade de redirecionar produtos a outros países e 42%, o anúncio de medidas como férias coletivas.
Quais as punições contra Moraes?
A Lei Magnitsky, utilizada pelo governo Trump para sancionar Moraes, leva o nome do advogado russo Sergei Magnitsky, preso e torturado em uma prisão russa por investigar crimes de corrupção e lavagem de dinheiro na Rússia. Magnitsky foi morto na prisão e motivou a sanção de uma lei para punir pessoas envolvidas nessa investigação e na morte dele. Em 2016, a lei foi ampliada para abranger outros casos de corrupção e violação de direitos humanos em outros países pelo mundo. Nos últimos anos, passou a ser usada também para aplicar sanções econômicas a adversários. Por conta disso, o mecanismo é chamado de “pena de morte financeira”. O STF já informou que Moraes não possui bens ou contas nos EUA. Confira abaixo quais as restrições que serão aplicadas a Moraes:
- Bloqueio de eventuais bens nos Estados Unidos;
- Bloqueio e proibição de abertura de contas bancárias nos Estados Unidos, sob pena de punição à instituição financeira;
- Proibição de ter cartões de crédito de bandeiras que operam nos Estados Unidos, o que inclui marcas como Visa e Mastercard, sob pena de punição à instituição financeira;
- Risco de bloqueio de redes sociais e serviços de big techs com sede nos Estados Unidos, o que poderia incluir serviços como Gmail, YouTube, Teams, WhatsApp e Google Drive. As empresas devem monitorar movimentação de citados na Lei Magnitsky, mas segundo especialistas por isso podem ficar sujeitas a punições nas leis brasileiras;
- Proibição de entrada nos Estados Unidos (medida que na prática já estava em vigor em razão do cancelamento do visto anunciado pelo governo Trump no início de julho).
O que acontece agora?
Mesmo com a iminência da entrada em vigor do tarifaço, a crise entre Brasil e Estados Unidos está longe do fim. Após a sanção a Moraes e a confirmação da sobretaxa a partir do dia 6, com a definição das exceções, o governo Lula já anunciou a intenção acionar a Justiça americana para tentar reverter a medida contra o ministro do STF. O ministro Fernando Haddad também sinalizou que a gestão federal pretende continuar tentando negociar com o governo Trump para resolver a questão dos setores que continuaram sujeitos à sobretaxa de 50%.
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Além disso, o governo Lula também prepara um plano de proteção à indústria direcionado aos setores afetados, com a intenção de preservar empregos. O pacote deve ser lançado nos próximos dias. Entre as medidas devem estar uma linha de crédito aos segmentos que tiveram as exportações afetadas pelo tarifaço. Um apoio com pagamento parcial de salários e o adiamento de tributos nos estabelecimentos das áreas afetadas seriam algumas das possibilidades também em discussão.
“Supremo não se desviará do seu papel”, diz STF em nota
Após a sanção ao ministro Alexandre de Moraes, o STF divulgou nota manifestando solidariedade ao magistrado e defendendo o papel da corte no julgamento da tentativa de golpe, que inclui o ex-presidente Bolsonaro. Confira abaixo a nota na íntegra:
Nota oficial do STF sobre sanções dos EUA ao Ministro Alexandre de Moraes
Em razão das sanções aplicadas ao Ministro Alexandre de Moraes, um dos seus integrantes, o Supremo Tribunal Federal vem se pronunciar na forma abaixo:
- O julgamento de crimes que implicam atentado grave à democracia brasileira é de exclusiva competência da Justiça do país, no exercício independente do seu papel constitucional;
- Encontra-se em curso, perante o Tribunal, ação penal em que o Procurador-Geral da República imputou a um conjunto de pessoas, inclusive a um ex-Presidente da República, uma série de crimes, entre eles, o de golpe de Estado;
- No âmbito da investigação, foram encontrados indícios graves da prática dos referidos crimes, inclusive de um plano que previa o assassinato de autoridades públicas;
- Todas as decisões tomadas pelo relator do processo foram confirmadas pelo Colegiado competente;
- O Supremo Tribunal Federal não se desviará do seu papel de cumprir a Constituição e as leis do país, que asseguram a todos os envolvidos o devido processo legal e um julgamento justo;
- O Tribunal manifesta solidariedade ao Ministro Alexandre de Moraes.
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Brasília, 30 de julho de 2025.
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