É difícil encontrar palavras que expliquem o que a perda de um filho significa. Quando ele tem apenas quatro anos e é vítima de um assassinato cruel, fica impossível. O que resta é o silêncio. Ao menos é isso que prevalece na casa de Jennifer Pabst e Paulo Edson da Cunha desde 5 de abril de 2023, quando o ataque a uma creche de Blumenau matou quatro crianças. Uma delas era o pequeno Bernardo Pabst da Cunha, filho do casal.
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Os brinquedos espalhados e o barulho de um menino cheio de energia no apartamento da família no bairro Velha foram substituídos pela organização e um vazio que machucam. Porém, no último ano, enquanto enfrentavam a montanha-russa que é conviver com o luto de perder o único filho — tão esperado e planejado —, Jennifer e Paulo decidiram trilhar o caminho oposto ao que têm dentro do lar: trocaram o silêncio por inúmeros diálogos, por gritos de socorro para que outras famílias nunca sintam na pele a dor deles.
Já em abril do ano passado, ela, a madrinha de Bernardo e o pai de outra vítima fizeram parte de uma comitiva de políticos que saíram de Santa Catarina em direção a Brasília. Na viagem, o grupo fez apelos ao Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Ministério da Justiça para que mudanças fossem adotadas a nível nacional, com o objetivo de evitar novos ataques no país.
— São três pilares principais: tornar esse tipo de crime hediondo, criar políticas públicas sobre saúde mental e lutar pela regulação das mídias — defende Jennifer
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Pouco menos de quatro meses depois, o presidente Lula assinou a lei que cria o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (Snave). Na prática, o Snave incentiva a implantação de estudos sobre o tema, o surgimento de programas que abordem a “cultura de paz”, um olhar mais atento aos educandários considerados violentos e um novo número de disque-denúncia, voltado apenas para violência nas escolas. A matéria que regulamentará o documento deve ser publicada em breve, acredita Letícia Cesarino, assessora especial no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Na esfera estadual, os debates após o crime em Blumenau resultaram na lei que cria o comitê Integra, que reúne 27 entidades governamentais, públicas e privadas, em um fórum de discussão permanente sobre a segurança das instituições de ensino. O encaminhamento do governador Jorginho Mello para a sanção ocorreu nesta semana.
O presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, deputado Mauro de Nadal, explica que com a publicação da nova lei o próximo passo é “lapidar” as ideias do comitê junto com os municípios para entender a necessidade de cada região.
— O Snave é nosso grande guarda-chuva, nossos projetos vão ter que clarear todos os itens desse sistema. É claro que queremos a parceria dos ministérios, até para conseguir investimentos — diz o deputado.
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Depois de uma série de reuniões, audiências públicas e outras atividades ao longo de 2023, o então Comitê de Operações Integradas de Segurança Escolar listou em um relatório, no fim do ano passado, quais ações deveriam ser adotadas em toda Santa Catarina. Entre elas estava a criação do Integra — que agora é uma realidade — e itens que abordam desde a implantação de câmeras nas instituições até ações multidisciplinares.

Apesar de boa parte desse processo ainda estar em andamento e discussão, algumas medidas já saíram do papel. Uma das principais foi a decisão de implantar em Santa Catarina o Ciber Lab, o laboratório cibernético da Polícia Civil. Desde agosto do ano passado três policiais especializados monitoram crimes em ambientes virtuais — incluindo possibilidades de atentados. Em pouco mais de seis meses, o serviço identificou 34 ameaças do tipo, 10 delas em cidades catarinenses, conta o delegado-geral Ulisses Gabriel.
Para aprimorar a missão no laboratório, a equipe buscou conhecimento em outros países, como Israel e Estados Unidos. Apesar de recente, a ação já resultou em operações da Polícia Civil e em alertas enviados a outros cantos do Brasil, pois não há limite geográfico na internet. Ulisses acredita que esse é um grande mecanismo de prevenção, uma tecnologia que deixa o Estado em pé de igualdade com qualquer outro lugar do planeta quando o assunto é monitoramento cibernético.
A internet virou o maior caminho para prevenir novos ataques porque é também a principal ferramenta dos criminosos. Letícia, que é também doutora em Antropologia, comenta que estudos recentes mostram que é comum a participação dos suspeitos em comunidades de violência extrema no submundo da web.
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Lá, eles dão sinais do que são capazes e do que planejam. Por isso e por não se importarem com a captura ou a própria morte, é importante que a trajetória desses indivíduos até o ato extremo seja interrompida através dos setores de inteligência, opina a especialista.
No entanto, a responsabilidade não fica só com a área da Segurança Pública. Tanto Ulisses quanto Letícia concordam que a palavra-chave está na educação, ainda que em ângulos diferentes. Para o delegado, o mundo acadêmico pode ajudar em pesquisas sobre o tema que detalhem cada vez mais o perfil de quem comete ataques a instituições de ensino. O conhecimento é essencial para os policiais identificarem quando estão diante de uma pessoa que apresenta esse tipo de risco à sociedade.
Já para Letícia, a comunidade escolar pode ajudar estando atenta aos sinais que um jovem com tendência homicida normalmente apresenta. A partir desse olhar, o apoio psicossocial e um acompanhamento que envolva várias frente e a família podem ser a fórmula para reverter situações delicadas.
— Mas é claro que para isso é preciso dar condições às escolas, a gente sabe que os professores estão sobrecarregados, não tem como pedir mais essa demanda para eles. Tem que ter política pública adequada, orçamento permanente, não tratar de forma individualizada — analisa a doutora.
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Além do Ciber Lab, a Polícia Civil de Santa Catarina pretende equipar até 2026 800 policiais com um kit com fuzis e outros itens para casos extremos. Diretores de escolas receberão o contato direto desses agentes para os acionarem em situações de risco.
A questão da prevenção de novos ataques tem tantas camadas e complexidades que é por esse motivo que os especialistas costumam falar em apoio “multidimensional”. Envolve monitoramento, educação, saúde mental, assistência psicológica e, principalmente, a família.
Vamos salvar o dia
Sempre que Bernardo acordava fazia parte de um ritual matinal dos pais: recebia o que eles passaram a chamar de “abraço em família”. O gesto era uma forma de demonstrar ao pequeno que os dois sempre estariam ali por ele, que não faltaria amor. Apaixonado por super-heróis, o menino acrescentou um grito de guerra ao costume do trio. Todas as manhãs, durante o abraço coletivo, eles diziam: “Vamos salvar o dia!”.
Foi por isso que, ao receberem o convite da psicóloga que começaram a frequentar após perder o filho, Jennifer e Paulo criaram o projeto “Vamos salvar o dia”. A ideia era palestrar em uma creche sobre a necessidade de não terceirizar o amor. O casal viu naquele dia a oportunidade de fazer a diferença através da própria experiência com a dor e o amor pelo filho.
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Agora, os dois, a psicóloga e Regina Maia, mãe de outra vítima, a menina Larissa Maia Toldo, de sete anos, viajam a outras cidades do Estado e promovem conversas com pais de alunos em escolas e creches. Eles fazem reflexões sobre como é possível melhorar a relação com as crianças, a importância de estar presente e realmente participar da vida dos pequenos. Até hoje, não teve um encontro que não terminasse em lágrimas e agradecimentos sinceros de pais motivados a mudar, revela Jennifer.
— Nós vemos por aí que há muita criança órfã de pais vivos. Isso é muito triste — comenta.
Jennifer é uma mulher que gosta de cores. Sempre maquiada, sorri com alegria quando conta histórias do filho. Repete para si mesma, várias vezes ao dia, que foi assim que ele a conheceu e que, por isso, não pode deixar o desânimo vencer. A luta não é fácil, confessa. Nem ela e nem Paulo conseguem expressar o motivo de sair de casa todos os dias. A vontade é justamente fazer o contrário, mas uma força inexplicável os move.
Relembre quem foram as vítimas
Bernardo Cunha Machado – 5 anos
Bernardo Pabst da Cunha – 4 anos
Larissa Maia Toldo – 7 anos
Enzo Marchesin Barbosa – 4 anos
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