Eduardo Luccas Fermiano, nove anos, gosta mais de atividades ao ar livre do que ficar em sala de aula. Não que não goste de aprender, mas nem sempre é fácil acompanhar as explicações e fazer provas. Aluno do 3º ano de uma escola da rede municipal de Joinville, aos poucos perde os 3% de capacidade de enxergar que tinha quando nasceu e se adapta à alfabetização pelo método Braille e ao aprendizado da matemática com o sorobã.
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Estas aulas específicas são realizadas só uma vez por semana, na Associação Joinvilense de Deficientes Visuais (Ajidevi). Na escola regular, Dudu é, basicamente, um ouvinte.
– Ele não recebe a mesma quantidade de atividades do que os outros, porque precisa de mais tempo. Mas, quando testado oralmente, vai bem – conta a mãe, Márcia Espindola Fermiano.
Eduardo faz parte do grupo de estudantes que vive um período de transição e adaptação do sistema escolar às leis que garantem a inclusão dos alunos com limitações físicas e intelectuais nas escolas regulares. É obrigação do poder público oferecer condições – como o auxílio de profissionais que garantam a adaptação dos alunos – para que o estudante seja integrado e conquiste a evolução no aprendizado.
Em Joinville, cerca de 900 alunos com algum tipo de deficiência ou transtorno global de desenvolvimento estão matriculados na rede municipal e 300 na estadual. Apesar do respaldo na legislação, ainda é um desafio garantir que eles tenham direitos iguais aos de todos os outros.
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– A educação especial foi um sistema paralelo por muito tempo, então cultivamos preconceitos em relação à capacidade de aprendizagem destes alunos. Mas a deficiência não é determinante para aprender ou não, é um aspecto no processo – diz a doutora em educação Aliciene Cordeiro.
Segundo a educadora, o sistema educacional de inclusão precisa ser formado por um ¿tripé¿ que garanta o acesso, a permanência e o direito ao aprendizado. A legislação sobre o direito de todos os estudantes cursarem a escola regular não é novidade – em 1989, já era proibido recusar a matrícula de um estudante com deficiência –, mas a compreensão de que estes alunos também têm direito a evoluírem academicamente é mais recente.
Para isso, além de profissionais, as instituições devem oferecer recursos. Famílias procuram a Justiça para reivindicar o auxiliar de educador por meio da Defensoria Pública de Joinville com frequência, segundo a defensora Larissa Gazzaneo.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Joinville também recebe reclamações e denúncias de falta de profissionais, mesmo tendo só caráter fiscalizador. Por isso, no início do mês, a Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB de Joinville promoveu um debate sobre a vigência dos contratos dos professores de apoio da rede municipal com representantes da Secretaria Municipal de Educação, da Defensoria Pública e de especialistas em educação e em direito constitucional.
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A reclamação é que, como estes profissionais são contratados em caráter temporário, em períodos de dois anos (sem possibilidade de renovação), há auxiliares desligados da função no meio do ano letivo. Com isso, os alunos que dependem deles ficam desamparados. No caso de crianças e adolescentes com distúrbios de interação social, este rompimento é ainda mais problemático, pois eles demoram para estabelecer vínculos de confiança.
Nos últimos dois anos, poucos casos que chegaram à Defensoria Pública foram judicializados.
– Os pais chegam com o cartão da Defensoria Pública na Secretaria Municipal e logo são atendidos. É uma mudança de cultura sutil que percebemos a partir deste ano – afirma Larissa.
A luta pelas mesmas oportunidades
Na escola ¿perfeita¿ de Eduardo, haveria uma professora que pudesse passar a maior parte do tempo com ele, auxiliando na compreensão das lições que ele não pode copiar do quadro.
Nos sonhos da mãe dele, além do segundo professor, também haveria material didático, ferramentas e profissionais capacitados para que o menino tenha as mesmas oportunidades que as outras crianças de aprender o conteúdo da grade curricular da educação básica, chegar ao ensino superior e desenvolver a carreira que escolher.
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Na escola que ele frequenta, no entanto, não há profissionais com conhecimento nas técnicas pedagógicas para cegos nem recursos que contribuam no processo de aprender.
– Pedi a instalação do DOSVOX (software de leitura para cegos que permite a inclusão digital) em um computador do colégio para que ele possa fazer os trabalhos e provas, mas até agora nada aconteceu – lamenta Márcia.
Todas essas lacunas a desestimularam a incluir Eduardo no turno das salas de apoio especial. Na única vez em que participou, o menino rabiscava aleatoriamente um papel quando a mãe chegou para buscá-lo. Segundo ela, a escola se comprometeu a fazer a capacitação da professora da sala de apoio para atender alunos cegos, mas isto ainda não aconteceu.
Márcia sabe que, por mais que o desenvolvimento cognitivo do filho seja idêntico ao das outras crianças, a ausência da capacidade de enxergar faz com que ele dependa de mais atenção, em um nível que a professora de turma não pode dedicar a apenas um aluno.
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Ao mesmo tempo, Eduardo não é prioridade dos auxiliares de educador – segundo as regras da Secretaria de Educação, ele tem direito a este atendimento, mas, como há alunos com deficiências físicas mais complexas na escola em que ele estuda, a auxiliar de educador se dedica a ele quando estes estudantes faltam às aulas.
No dia a dia, Eduardo acaba dependente da disponibilidade de outros profissionais da escola e até dos colegas para se locomover pelo espaço escolar e para ir ao banheiro. Chegando aos últimos anos da infância, a falta de autonomia começa a criar constrangimentos.
O ideal seria que o auxiliar de educador colaborasse no desenvolvimento da independência do aluno dentro daquela estrutura, mas, segundo Márcia, não é o que acontece: estes ensinamentos são repassados ao garoto apenas na Ajidevi, e não na escola regular.
Cada caso é diferente e especial
A falta de acompanhamento especializado para garantir a adaptação da grade curricular às necessidades do aluno é o que faz o músico Álvaro Henrique temer que o filho Ícaro, de cinco anos, viva a escolarização de forma incompleta.
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O menino foi diagnosticado com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) há um ano, e um pedido de auxiliar de educador já foi encaminhado à Secretaria de Educação pelo Centro de Educação Infantil, mas não houve contratações. Desde 2013, a Lei Berenice Piana diz que autistas têm os mesmos direitos que pessoas com deficiência, como o acompanhamento de profissional em sala quando comprovada a necessidade.
Álvaro reúne os laudos com o diagnóstico de Ícaro. Ele tem o nível mais leve do transtorno, classificado como Síndrome de Asperger até 2013, e que compromete, especialmente, as interações sociais. Para Ícaro, é difícil aceitar regras e rotinas, mas ele tem concentração e memória fora do comum.
– Em 2018 ele irá para o primeiro ano e terá muito mais conteúdo. Geralmente, a criança sai da educação infantil escrevendo o próprio nome, mas o Ícaro se recusa a aprender – conta o pai.
Álvaro se preocupa ainda com a contratação temporária dos auxiliares de educador, que trabalham por dois anos não renováveis (o profissional pode concorrer à vaga após dois anos fora da rede municipal). Crianças com o diagnóstico de Ícaro têm dificuldade para criar vínculos.
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– Ele vai demorar até confiar no professor. Passado este processo, o contrato acaba e o auxiliar muda. A relação volta à estaca zero – imagina o pai.
Segundo a gerente de educação da Secretaria Municipal de Joinville, Sonia Fachini, o objetivo é que os professores temporários participem de concurso e se tornem efetivos, por isso não há renovação.
Ainda segundo ela, as escolas com alunos com deficiência têm professores com formação contínua para atender às adaptações necessárias. Casos não atendidos devem ser encaminhados à Secretaria de Educação, que analisará e tomará providências.
Como funciona o atendimento
O atendimento para inclusão é diferente nas escolas da rede municipal e da estadual de Joinville. Na municipal, a compreensão é que cabe ao professor criar mecanismos para receber, incluir e ensinar a todos os alunos dentro da particularidade de cada um.
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O auxiliar só é chamado no caso de alunos que precisam de ajuda para desenvolver as atividades cotidianas, como ir ao banheiro, locomover-se ou se alimentar. São os mesmos profissionais contratados para as vagas de auxiliar de classe dos CEIs.
Na rede estadual, há a figura do segundo professor para alguns casos. A função dele é conduzir o processo de aprendizagem da turma com o professor de classe enquanto ambos planejam as atividades e as adaptações curriculares (no caso do 1º ciclo do ensino fundamental); e fazer as adaptações curriculares junto aos professores de cada disciplina (no caso do 2º ciclo do fundamental e do ensino médio).
Em ambas, há oferta de atividades no contraturno, com salas de apoio que, por regra, devem ter recursos como material pedagógico adaptado e brinquedos pedagógicos. A participação do aluno não é obrigatória e tem horários definidos de acordo com as dificuldades e as atividades realizadas em outras instituições.
Para a mestre em educação Cristina Ortiga, o segundo professor não deve ser um profissional que se dedica só ao aluno com deficiência: o trabalho dele é, junto com o professor regente.
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– O comum é acreditarem que, se tiver dificuldade, o segundo professor é quem irá atender a este aluno. Na verdade, o ideal é que o segundo professor assuma a classe enquanto o regente presta este atendimento individual – explica a mestre.
A necessidade do professor com especialização em educação especial – e sua parceria com os outros professores, sem assumir sozinho a formação do aluno com deficiência – torna-se ainda mais fundamental no ensino médio, pois impossível que um profissional tenha conhecimento de todas as matérias.
Ele precisa encontrar meios de, por exemplo, ensinar disciplinas que utilizam símbolos e fórmulas a alunos cegos ou surdos, que utilizam outros sistemas de comunicação e de escrita, respectivamente.
Desafio de Carolina
Quando Carolina Beiro da Silveira, 30 anos, entrou em idade escolar, os pais fizeram uma espécie de via-crúcis pelas escolas particulares de Belo Horizonte, onde viviam, em busca de vagas na primeira série.
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Na época, não havia legislação que proibisse as instituições de ensino de recusarem matrícula para alunos com deficiências físicas ou intelectuais, e os joinvilenses Mario Cezar e Celia ouviram muitas respostas negativas e até mesmo um conselho de que ¿as escolas públicas é que tinham o dever de atender a `estas¿ crianças¿.
Por isso, mesmo que a paralisia cerebral tenha afetado apenas habilidades de movimento e postura da jovem, ela precisou ingressar em uma escola especial.
– No início, achei muito deprimente. Havia alunos com condições severas de deficiência. Mas percebi que, da mesma forma que as escolas tinham preconceito com a minha filha, eu estava sendo preconceituoso com aquelas crianças – recorda Mario.
Passar os primeiros quatro anos do ensino fundamental entre estudantes com mais limitações do que ela fez com que Carolina – e, consequentemente, toda a família – aprendesse lições valiosas sobre as diferenças. Lá, a concepção de educação inclusiva já era vivida da melhor forma que se poderia imaginar para uma instituição nos anos 1990: olhava-se para o potencial de cada estudante, e não para suas limitações.
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Desta forma, a linha pedagógica era trabalhar para que o aluno fosse o melhor que pudesse ser. É um conceito com o qual Carolina trabalha hoje, já que atua como psicóloga escolar no campus de Araquari do Instituto Federal Catarinense.
A busca por uma carreira, no entanto, poderia não ter acontecido se, na segunda etapa do ensino fundamental, a família não tivesse mudado para Joinville e encontrado uma escola que aceitou fazer todas as adaptações necessárias para recebê-la.
Estar entre outros adolescentes que tinham como foco, ao fim do terceiro ano do ensino médio, fazer vestibular e entrar na faculdade a levaram a encarar este como um caminho natural. Não era, no entanto, a realidade da maioria das pessoas com deficiência na época: segundo o Ministério da Educação, em 2000 havia apenas 2.173 estudantes com deficiência matriculados na educação superior.
As leis de inclusão criadas naquela década fizeram com que a quantidade de matrículas aumentasse 933,6% no período, com cadastro de 20.287 pessoas com deficiência entre os alunos das faculdades brasileiras em 2010.
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– É difícil dizer quem eu seria se não tivesse estudado em uma escola regular: eu seria outra pessoa. Foi um desafio me inserir na sala de aula, principalmente depois de ter sido a melhor em condições físicas e intelectuais na minha escola – avalia Carol.
– Aprendi como a diversidade humana é positiva e a sociedade perde por não conviver com ela.
Conheça as leis que garantem a educação inclusiva no Brasil
1988 – Constituição da República Federativa do Brasil
Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
1989 – Lei nº 7.853/89
Define como crime recusar, suspender, adiar, cancelar ou extinguir a matrícula de um estudante por causa de sua deficiência, em qualquer curso ou nível de ensino, seja ele público ou privado. A pena para o infrator pode variar de um a quatro anos de prisão, mais multa.
1996 – Lei nº 9.394/96, atual LDB
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Entende cada pessoa em sua peculiaridade, assegurando currículos, métodos e recursos específicos, assim como sua terminalidade específica para os que não atingiram o nível mínimo exigido e a aceleração escolar para os superdotados.
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2008 – Decreto nº 6.571
Dispõe sobre o atendimento educacional especializado, tem como novidade fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos que eliminem as barreiras no processo de ensino e aprendizagem por meio implantação de salas de recursos multifuncionais, ambientes dotados de equipamentos, mobiliários e materiais didáticos e pedagógicos para a oferta do atendimento educacional especializado e a elaboração, produção e distribuição de recursos educacionais para a acessibilidade que incluem livros didáticos e paradidáticos em braile, áudio e Língua brasileira de sinais (Libras) laptops com sintetizadores de voz, softwares para comunicação alternativa e outras ajudas técnicas que possibilitam o acesso ao currículo.
2009 – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
Aprovada pela ONU e da qual o Brasil é signatário, estabelece que o Estado deve assegurar um sistema de educação inclusiva em todos os níveis. Determina que as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino fundamental gratuito e compulsório; e que tenham acesso ao ensino fundamental inclusivo, de qualidade e gratuito, em igualdade de condições com as demais pessoas (art.24).
2015 – Lei Brasileira da Inclusão (LBI)
O estatuto que contempla todas as pessoas com deficiência prevê a obrigatoriedade para as escolas privadas promoverem a inserção de pessoas com deficiência no ensino regular e proverem medidas de adaptação necessárias sem que nenhum ônus financeiro seja repassado às mensalidades e matrículas; aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem e a oferta de profissionais de apoio escolar.