No clássico da animação "A Menina e o Porquinho", de 1973, um número musical inteiro é dedicado ao antagonista do filme, um rato chamado Templeton, que se alimenta do lixo da feira. Ele engole restos de maçã, cascas de banana e coxas de peru como se não houvesse amanhã. Em certo momento, ele faz malabarismo com a comida que encontrou em uma lixeira, enquanto usa uma casca de melancia como prancha de surfe. Mais que sobreviver, o rato prospera no lixo.
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Agora, à medida que os seres humanos no mundo todo ficam enfurnados em suas tocas, muitos são obrigados a encarar o próprio lixo acumulado. Até mesmo quem costumava recolher cada casca de cebola e de limão para a compostagem precisa decidir se vai congelar o lixo orgânico para mais tarde ou se vai jogar tudo no lixo comum.
Por conta de ansiedade, culpa, virtude recém-descoberta, frugalidade ou todas essas coisas juntas, pessoas que não costumavam separar o lixo começaram a mudar de hábitos e a fazer pesto com o talo da cenoura ou a replantar a cebolinha depois de deixar a raiz crescer na água.
Em vista da pandemia, do aquecimento global e da sequência interminável de notícias macabras, poupar algumas cebolas do lixão pode parecer o mesmo que arrumar as cadeiras no convés do Titanic.
Mas, como Tejal Rao escreveu no "The New York Times", "isso pode levar a uma reação coletiva, e todos esses pequenos hábitos podem mudar nossa cultura alimentar".
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E, no âmbito mais individual, esse átimo de autonomia pode nos render um pouco de controle sobre nossa própria vida.
A seguir, uma lista de coisas que podemos fazer com o lixo:
Velas de gordura animal
Kami Ahrens, curadora assistente da Foxfire Foundation, um centro de preservação das tradições dos Apalaches, em Mountain City, na Geórgia, disse que, durante todo o século XX, os habitantes da região dos Apalaches faziam de tudo para preservar e reutilizar os recursos escassos. "Um ditado afirmava que do porco se usa tudo, menos o berro", comentou. A gordura animal, por exemplo, era usada para fritar bolinhos, curar ferro fundido e fazer sabão e velas.
Para iluminar a casa, aqueça a gordura suína ou bovina em fogo baixo ou em uma panela elétrica de cozimento lento durante muitas horas com um pouquinho de água. Jogue fora o que boiar e coloque o líquido restante em um pote. Basta introduzir um pavio no pote e pronto: você tem uma vela perfeitamente funcional que, por menos bonita que seja, pode fazer maravilhas para seu senso de autossuficiência. Além disso, Ahrens garante que a casa não fica com cheiro de carne.

Tinturas vegetais
Cascas de cebola, restos de beterraba, folhas de cenoura, caroços de abacate e saquinhos de chá podem ser usados para fazer tinturas menos saturadas, mas que rendem tons deliciosamente suaves. Os caroços de abacate criam um tom rosado, enquanto o café resulta em tons que vão do ocre ao areia e o chá de hibisco apresenta tons avermelhados.
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Até mesmo a água do feijão-preto pode ser usada, de acordo com Anastasia Cole Plakias, fundadora da Brooklyn Grange, uma empresa que transforma coberturas de prédios em hortas urbanas. "A água do feijão-preto tem um tom azul bem claro e muito bonito." Plakias também faz aquarelas com tintas de origem vegetal e até usa beterrabas para dar cor e doçura à cobertura de bolos.
Para o processo de tintura, é preciso fazer um chá concentrado com os ingredientes e ferver tecidos naturais não branqueados, como algodão, linho ou lã, nessa mistura. Para fazer isso, você vai precisar de uma panela só para as tinturas e de um fixador para segurar a cor. Em geral, usa-se alume, embora existam soluções populares, como a ferver uma panela com pregos velhos. (Por isso não é bom usar essa panela para cozinhar.)
Materiais de jardinagem
Simon Perez, que criou receitas para o livro de receitas sustentáveis "Future Food Today" (Comida do Futuro na Atualidade, em tradução literal), disse que cascas de ovos moídas podem ser misturadas com a água para fornecer cálcio e magnésio às plantas, e que a borra de café jogada diretamente na terra oferece uma dose extra de nitrogênio.
Ahrens, da Foxfire, recomenda secar ossos de galinha em um desumidificador ou no forno a baixas temperaturas e moê-los no processador. ("Também dá para esmagar com um martelo", comentou.) O resultado é um fertilizante rico em fósforo, um dos principais nutrientes para as plantas.
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Nas últimas semanas, reaproveitar talos de cebolinha se tornou a nova forma de lidar com o estresse do isolamento social, depois da moda da produção de fermento caseiro. Plantas da família da cebolinha são ideais para o replantio, assim como a hortelã, a coroa do salsão e até a do abacaxi (ainda que, na melhor das hipóteses, você tenha de esperar anos para provar o fruto de seu trabalho).
Yolanda Gonzalez, especialista em agricultura urbana pela Cornell Cooperative Extension, comentou que as cebolinhas são as plantas que se regeneram mais facilmente: "Tudo o que você precisa fazer é cortá-las a cerca de dois centímentros da raiz e deixá-las em um copo d'água." Ela recomendou experimentar as cebolas egípcias, que formam pequenos bulbos que podem ser replantados.

Coquetéis de cascas de frutas
Depois de passar o café, Claire Sprouse nem sempre joga fora a borra. Em vez disso, ela faz o que chama de "café velho", reaproveitando o pó uma segunda vez. O resultado é um líquido amargo e aguado que não é a coisa mais gostosa do mundo, mas que, quando misturado com a mesma medida de açúcar, se transforma em um xarope ideal para ser usado em um espresso martini ou em um coquetel old-fashioned.
Sprouse, que é dona do café e bar Hunky Dory, no Brooklyn, está no limbo desde meados de março e tem cozinhado muito mais que de costume. "Estamos desperdiçando muita comida neste momento", disse.
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Inspirada pelo desafio, Sprouse entrou em contato com bartenders de todo o país para criar coquetéis que usam os restos da cozinha. O resultado é um livro chamado "Optimistic Cocktails" (Coquetéis Otimistas, em tradução literal), disponível para download em PDF por US$ 15; todo o dinheiro arrecadado será destinado à manutenção dos bares e a fundos para trabalhadores ilegais. As receitas incluem um drink que usa xarope de casca de banana, rum, lima e suco de laranja.
Os seres humanos usam restos de frutas para fazer bebidas alcoólicas desde tempos imemoriais. O tepache, uma bebida fermentada mexicana feita de cascas de abacaxi, é fácil de fazer e fica delicioso no drinque highball.
"Tradicionalmente, as pessoas pegavam as cascas de abacaxi, misturavam com um pouco de fruta, temperos e açúcar, e cobriam tudo com água", contou Sprouse. Depois, é só cobrir a mistura com um pano limpo e deixar fermentar. Em casa, Sprouse gosta do tepache com um pouco de tequila.
Há quem jogue as cascas de frutas cítricas na composteira depois de tirar o suco, mas elas têm seu próprio sabor e aroma. "As cascas têm aquela característica bem cítrica e fresca que sentimos quando entramos em uma loja de suco", disse Sprouse.
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Para aproveitar todo o aroma, coloque as cascas em uma cumbuca, polvilhe-as com açúcar e deixe-as cobertas no balcão da cozinha por um ou dois dias. O açúcar absorve os óleos da casca e forma um xarope ideal para um Collins ou um gimlet. Acrescente um pouco de suco cítrico (se você tiver; se não, água serve) à mistura para incorporar o açúcar e complete a mistura com um pouco de vodca para a infusão durar mais na geladeira.
Não se preocupe com medidas muito precisas na hora de usar as cascas para fazer o xarope. Esse é o momento ideal para experimentar durante o processo. "Ninguém sabe que mágica pode sair disso", concluiu Sprouse.
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