Religião, tratamento, reinserção social, reaproximação da família, emprego. Não importa o motivo. É preciso comemorar quando alguém reencontra o caminho. Padre Júlio Lancelotti, vigário episcopal para o povo de rua e ativista de direitos humanos, conhecido por sua atuação com a população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo, costuma dizer que ir para ruas é um processo. Sair delas também.
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Para a assistente social Irmã Remor Silva, com anos de experiência com esta população em Florianópolis, o maior desafio é a dependência química. Além do conflito em lidar com o dinheiro.
– A pessoa faz tratamento e mantém a abstinência, mas recai quando consegue dinheiro. Até os casos de transtornos mentais, quando o paciente é medicado e cuidado, é mais fácil de equilibrar – diz.
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Daniel Paz dos Santos, hoje com 49 anos, tinha medo da violência doméstica quando menino. A situação piorou aos oito anos, quando viu o pai, bêbado, com um facão cortar o pescoço da mãe. Ela não morreu, mas foi hospitalizada. Foi quando Daniel descobriu um lugar mais seguro para ficar: as ruas da cidade gaúcha de Torres.
Ele acredita que tenha dado a virada na vida a partir de uma série de situações. Ele dormia nas ruas do Centro de Florianópolis, perto de uma loja de antiguidade e dentro tinha uma cômoda com um espelho redondo. De manhã, quando acordava, ele se olhava e tinha uma sensação estranha, de não ser ninguém, de não ter identidade.
– A partir daquela imagem refletida, da morte na rua de dois companheiros numa noite muito fria e pela violência que a gente sofria eu me senti machucado. Tomei a decisão de buscar outro rumo. Lembro de ter dito para o espelho: espelho, espelho meu! Existe alguém mais invisível do que eu? E a resposta que vinha era sempre a mesma: não, ninguém, nada – relembra.
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Hugo Floriano Souza Andrade, coordenador de um centro de recuperação, em Potecas, São José, mantido pelo Projeto Amor Incondicional Resgatando Vidas, também vê na dependência química um entrave severo. Mas acredita que a falta de moradia também seja:
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– Vivi três anos nas ruas e certa vez consegui um emprego numa loja. Como não tinha casa para morar, frequentava o Centro Pop para tomar banho e trocar de roupa. Quando as pessoas pediram meu endereço para assinar a carteira de trabalho eu fiquei numa situação difícil, constrangedora, e acabei saindo – relembra.
– Na rua se sofre antipatia, crimes de ódio, preconceito, marginalização. O fato de se estar ali não significa ser criminoso. A vida, às vezes, prega peça na gente, e nem se imagina que seremos inseridos nesta realidade – complenta Daniel Paz dos Santos.
Moradia é uma das bandeiras do Movimento População de Rua de Santa Catarina. Uma mobilização em 19 de agosto teve como slogan “Chega de papelão”. Enquanto isso, o déficit habitacional do Estado, conforme último diagnóstico realizado com os municípios por meio da Diretoria de Habitação e Regularização Fundiária, é de cerca de 153 mil famílias, somadas a 53.549 famílias vivendo em situação de risco.
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Existem estudos sobre um programa para beneficiar catarinenses em situação de extrema pobreza e pobreza, principal grupo de famílias desassistidos pelo Minha Casa Verde e Amarela (antigo Minha Casa Minha Vida).
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– A ideia é subsidiar as casas de forma integral pelo Governo Estadual, com o apoio dos municípios catarinenses – explica Daniel Netto Cândido, secretário adjunto do Estado do Desenvolvimento Social.
A dificuldade, alega, é buscar recursos financeiros suficientes para a articulação de políticas públicas efetivas. Conforme Cândido, existe uma lacuna de quase 12 anos sem o Estado construir uma casa sequer 100% subsidiada pelo governo do Estado. Já junto aos municípios o problema é outro: é necessário que as prefeituras forneçam terrenos para que casas ou conjuntos habitacionais sejam articulados.
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A realidade das ruas é volátil. O vaivém é constante. Mas é possível traçar um perfil desta população em Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu. A referência é uma pesquisa organizada pelo Instituto Comunitário Grande Florianópolis (ICOM), Movimento Nacional de População de Rua em Santa Catarina e por organizações comunitárias da região. O Diagnóstico Social Participativo da População em Situação de Rua, o Pop Rua, é de 2017, mas segue como modelo quando se quer conhecer “os moradores de rua” da região.
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– O Pop Rua foi um projeto feito da base para a base, já que as próprias pessoas em situação de rua foram pesquisadoras. Dados como os coletados por esse diagnóstico são muito importantes para subsidiar políticas públicas, incentivar o debate e assim chegarmos a uma verdadeira transformação social. As informações precisam ser sempre atualizadas – diz Mariane Maier, gerente-executiva do ICOM.
Ainda há muito por fazer, diz Mariane, mas o diagnóstico conseguiu colocar essa pauta na agenda pública e segue o debate por soluções.
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A partir de 2018, o Grupo de Trabalho em Prol das Pessoas em Situação de Rua (GT Rua) da Defensoria Pública da União (DPU) fez atendimento jurídico nos espaços do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop), na Capital. O trabalho envolve a garantia do acesso às políticas públicas, de forma judicial ou por meio de pedidos administrativos.
O atendimento ficou suspenso durante a pandemia. Até então, os casos mais comuns tratados pela DPU eram a solicitação de saque do FGTS e o pedido de benefícios previdenciários. As principais demandas são relacionadas a benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), à confecção de documentos e à obtenção de remédios e tratamentos de saúde. Com a retomada gradual do trabalho presencial na unidade da DPU, os trabalhos no Centro Pop devem ser retomados.
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O defensor público estadual Fernando André Pinto de Oliveira Filho é subcoordenador do Núcleo de Cidadania, Igualdade, Diversidade, Direitos Humanos e Coletivos (NICIDH). O defensor lembra que a questão é enfrentada quase que exclusivamente a nível municipal, por parte de políticas estabelecidas pelas Secretarias de Assistência Social, que variam bastante de acordo com a região, e com as prioridades elencadas por cada municipalidade.
– A Defensoria Pública do Estado iniciou, em maio, o projeto Defensoria com a Rua, com a realização de atendimentos semanais no Centro Pop de São José e na Passarela da Cidadania em Florianópolis. Existe previsão de atuação em Palhoça no segundo semestre deste ano – diz o defensor.
A intenção é ampliar este serviço para os demais núcleos regionais. As principais demandas são consultas de processos (cíveis ou criminais), itens relacionados a questões de família, auxílio e orientação para obtenção de documentos.
Veja como ajudar
– Lembre-se: cada município tem suas normas acerca da população de rua. Em Florianópolis, existe uma campanha para não dar esmolas.
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– Se mesmo assim você preferir dar dinheiro convém lembrar: a pessoa poderá fazer uso como ela quiser.
– Oferecer alimento é sempre interessante. Se possível, acompanhe a pessoa até a padaria ou mercado para evitar que ocorra discriminação.
– Vulneráveis são mais expostos às violências. Se perceber maus-tratos acione a PM pelo 190; e tente acompanhar os desdobramentos.
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– População de rua também tem direito ao SUS. Acione o SAMU pelo 192 se encontrar alguém precisando de ajuda.
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– Pesquise as ONGS da sua cidade que trabalham com moradores em situação de rua. A maioria tem Facebook e Instagram.
– Dê uns minutinhos de atenção. Às vezes, uma conversa tem poder de transformação maior do que se imagina.
– Solidariedade é fundamental, mas cabe aos gestores públicos políticas de acolhimento e moradia. Ajude a cobrar dos governantes.
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Fonte: Manual sobre o cuidado à Saúde junto a População em Situação de Rua
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