A boca é um dos meios mais eficazes de exercer uma identidade cultural. Para além dos idiomas e dialetos, é nessa região do corpo que sentimos o paladar. Em redes sociais como o Tik Tok, viralizou recentemente o termo comfort food – comida confortável em português –, que é aquela que possui valor nostálgico ou sentimental. Ou seja, alimentos que formaram a memória de uma pessoa, como um prato especial que a mãe fazia na infância.
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No entanto, essa memória não é apenas individual. Ela pode ser coletiva, se tornando símbolo identitário de um povo.
“Comer não representa apenas o fato de incorporar elementos nutritivos importantes para o nosso organismo, é antes de tudo um ato social e, como toda relação que se dá entre pessoas, traz convívio, diferenças e expressa o mundo da necessidade, da liberdade ou da dominação. A comida é tão importante e identificadora de uma sociedade, de um grupo, de um país, como de um idioma, funcionando como um dos mais importantes canais de comunicação. Comer é existir enquanto indivíduo, enquanto história, enquanto cultura, dando sentido de pertencimento a uma comunidade, a um povo”, explicam os pesquisadores Gisele Lima, João Freitas, Neide Kazue e Rodrigo Veloso no artigo Influência do Fast-Food na cultura alimentar mexicana, publicado em março de 2022, na revista Conjecturas.
É por isso que quando os manezinhos, por exemplo, preparam um prato com tainha assada, pirão d’água e feijãozinho sentem não só o prazer de comer uma boa comida, como se sentem pertencentes a uma sociedade que compartilha signos. O mesmo acontece com os gaúchos e seu churrasco único, os mineiros e suas iguarias, os mexicanos e sua pimenta, os japoneses e o seu sushi. Até o prato médio brasileiro se torna um alimento típico que carrega significados políticos: arroz, feijão, salada e carne constituem a história do país.
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Porém, o que acontece quando a batata frita, um alimento típico dos fast food americanos, entra no prato feito? Os autores do texto científico argumentam que há um apagamento de símbolos típicos de uma região que são detectados pela boca.
As batatas surgiram na França ou na Bélgica?
A batata frita dominou e se incorporou na gastronomia de diversos países. Elas estão nas fish and chips, da Inglaterra, com queijo e molho, no Canadá, com maionese, na Bélgica e acompanhando os hambúrgueres estadunidenses.
Segundo Albert Verdeyen, autor de “Carrément Frites”, o prato surgiu em Namur, que é uma região francófona da Bélgica, por isso o nome em inglês french fries. Nesse lugar, as pessoas comiam muito peixe frito, mas, devido a impossibilidade de pesca no inverno de 1680 – quando os lagos congelaram –, recorreram a fritar batatas.
Consumo de fritura pode aumentar o risco de depressão e ansiedade
Por outro lado, o professor da Universidade de Liège, Pierre Leclercq, diz que a tese de Verdeyen é parcialmente correta, mas que foi no inverno de 1739 e que eles não fritaram as batatas. A autoria intelectual da batata frita se tornou uma disputa política e, sobretudo, identitária entre Bélgica e França. A Bélgica, inclusive, chegou a pedir para que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconhecesse como elemento nacional e declarasse Patrimônio da Humanidade.
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Entretanto, o tubérculo surgiu mesmo na Cordilheira dos Andes e foi levada para a Europa somente a partir de 1500, de acordo com a historiadora de alimentos Rebecca Earle, autora de Feeding the People: The Politics of the Potato, algo como “Alimentando os Povos: A Política da Batata”, em tradução livre.
A despeito do criador, porém, o pivô da globalização de um dos alimentos mais típicos do mundo foram os Estados Unidos que, através de sua indústria gastronômica, que possui gigantes globais como o McDonald’s e Burguer King, conquistaram bocas e suas e culturas em praticamente todos os países.