Clelia Gomes de Mello, 65 anos, vive no escuro. Não lhe falta visão, tampouco energia elétrica. A escuridão é resultado da ausência de respostas.

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– Quero a minha irmã de volta. Fazer uma última homenagem dando a ela um enterro digno. Saber onde está o corpo da Alceri vai representar o fim desta noite em que vivo desde que desapareceu – explica, com a voz embargada pela emoção.

Clelia é integrante de uma das três famílias do Vale do Itajaí que tiveram renovadas as esperanças de obter respostas sobre as circunstâncias da morte de parentes vítimas da repressão militar. Elas terão o nome do familiar morto durante a ditadura indicado para que a Comissão da Verdade, criada em dezembro, dê esclarecimentos sobre os abusos.

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>> Assista o depoimento de Clelia Gomes de Mello <<

A indicação dos nomes à comissão será feita pelo Coletivo Catarinense Memória Verdade e Justiça, que reúne familiares em busca de notícias de desaparecidos políticos. A comissão será formada por sete integrantes indicados pela Presidência da República e terá prazo de dois anos para investigar casos de violação aos direitos humanos e abusos cometidos no país entre os anos de 1946 e 1988.

Alceri Maria Gomes da Silva foi morta junto com um colega de militância por agentes de segurança do Estado em São Paulo, dia 17 de maio de 1970. Estava a oito dias de completar 27 anos. Os agentes invadiram a casa em que moravam, no Bairro Tatuapé, e balearam os dois. De acordo com o laudo de necropsia, Alceri foi atingida por quatro tiros, que perfuraram o pulmão e a aorta. O corpo nunca foi entregue à família.

Quarta das sete filhas do casal Gomes, nasceu na cidade gaúcha de Cachoeira do Sul. Na adolescência a família mudou-se para Canoas, região metropolitana de Porto Alegre.

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Na companhia de Clelia deu os primeiros passos na militância. As duas entraram na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma organização de extrema esquerda que lutava contra o regime militar imposto a partir de 1964. Foram levadas ao movimento pelo advogado Carlos Franklin de Araújo, que anos depois se tornaria marido e pai da filha da atual presidente Dilma Rousseff. Na época, ele trabalhava para o sindicato dos metalúrgicos do qual Alceri fazia parte.

– Quando fomos pela primeira vez em uma reunião destas não sabíamos nada. Mas começaram a nos contar que, enquanto o presidente estava comendo e bebendo do melhor, nossos irmãos de país estavam desempregados, passando fome. Era revoltante. Lutávamos para que o outro pudesse ter uma vida melhor, mais digna – recorda Clelia.

No final dos anos 1960, os perigos de ser flagrado em militância cresciam com o aumento da repressão. A Grande Porto Alegre já não era mais segura para quem fazia oposição ao regime. Em 1969, Alceri teve de abandonar o trabalho para viver na clandestinidade. Mudou-se para São Paulo, onde menos de um ano depois seria morta.

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– Minha mãe foi a primeira a saber. Um investigador da polícia, de apelido Dois Dedos, foi à casa dela e disse: “Sabe aquela sua filha que se meteu na esquerda? Foi morta. E nem adianta procurar porque, assim como ela foi, pode ir uma família inteira”. Minha mãe quase morreu – relata a irmã da vítima, que mora na Ponta Aguda, em Blumenau.

O crime desestruturou a família Gomes. O pai e a mãe de Alceri desenvolveram problemas de saúde. Uma das irmãs, casada com um militar e contrária à militância de oposição, afastou-se. Uma outra, que morava em São Paulo, suicidou-se, conta Clelia:

– Ela morava em São Paulo quando a Alceri morreu e enlouqueceu achando que deveria ter feito alguma coisa para salvar a irmã. Sentiu-se culpada porque não viu o perigo que rondava a irmã. Começou a usar drogas e acabou se matando com soda cáustica dois anos depois.

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As feridas foram tantas que Clelia só foi atrás de informações sobre a morte da irmã depois que os pais morreram, no início dos anos 1990. Enquanto estavam vivos, preferiu evitar mais sofrimento. Nos últimos 20 anos, conseguiu juntar atestado de óbito, laudo de necropsia e um ou outro documento no qual a morte da irmã é relatada. Da Comissão da Verdade espera receber ajuda para encerrar esta luta:

– Quero que a verdade venha à tona. Que quem matou a minha irmã assuma o que fez. Que me devolvam os ossos dela. Só assim vou poder dizer que esta luta valeu a pena.

Veja a matéria completa no Santa impresso deste fim de semana.